Cães-guias: muito além do que os olhos podem ver
Animais ajudam deficientes visuais a superar limitações.
Deborah DubnerReportagem feita em parceria entre a Revista Regional e o Portal itu.com.br, pelos jornalistas Piero Vergílio (Regional), Deborah Dubner e Jéssica Ferrari (itu.com.br)
“Ontem, uma amiguinha sua chamada ‘Fortune’ foi impedida de permanecer dentro de um restaurante na cidade de Itu. A Fortune é um cão-guia que está em fase de treinamento e o estabelecimento, que é muito conceituado, não permitiu a sua entrada. Por lei, ela estava amparada, porém fomos discriminados. Você poderia ajudar a divulgar para que isto não aconteça mais?”
O desabafo que você acabou de ler foi escrito por Marcelo Kendi e compartilhado pela jornalista Silvia Czapski em sua página no Facebook, no dia 15 de fevereiro. Indignada com a situação, ela convocou colegas da imprensa – bem como todos os amigos “que lutam por uma Itu melhor” – a se mobilizar para que a cena não se repetisse. Desde então, todos começaram a se questionar sobre como poderiam contribuir para que a população se conscientizasse acerca da relevância do tema.
No tocante aos meios de comunicação, a resposta parece ser simples. Reafirmando seu compromisso de manter os seus leitores sempre bem informados, as equipes da Revista Regional e do portal Itu.com.br se uniram para produzir esta reportagem especial, publicada simultaneamente em ambos os veículos. A proposta é descobrir se os direitos de deficientes visuais – e de voluntários que adotam temporariamente os cães-guias para socializá-los – estão sendo respeitados nas cidades da região. Numa outra frente, buscamos especialistas para orientar como proceder em caso de descumprimento da lei e fomos conhecer histórias de pessoas que batalharam para ter mais independência, transformando-se em exemplos para a sociedade.
Comecemos, então, ressaltando a importância do cão-guia para o deficiente visual. Quem nos explica os benefícios dessa convivência é o especialista em esporte para pessoas com deficiência Steven Dubner. Conhecido internacionalmente por suas palestras motivadoras, ele é o fundador da Associação Desportiva para Deficientes (ADD) e atua, principalmente, no Brasil e nos EUA. “Um cão guia é maravilhoso para uma pessoa cega. Além de ajudar na locomoção e dar mais independência e autonomia, ele também cria um vínculo emocional muito forte, elevando a autoestima do deficiente.”
O especialista também enfatiza que os animais são treinados para se comportar em lugares públicos. Eles não latem, não atacam, não brincam, não aceitam comida de ninguém, além do tutor, e só fazem as necessidades em horários específicos. Dentro de um avião ou metrô, costumam ficar de frente para o deficiente, para não assustar as pessoas próximas. Os cães ainda desviam de obstáculos aéreos. “Os cegos sempre arrebentam a testa nos orelhões, porque a bengala chega depois, ou caem em bueiros sem tampa. Se ele estiver com um cão-guia isso nunca vai acontecer”, esclarece.
No entanto, Steven faz questão de frisar que a fase de adaptação é de vital importância. “Nos EUA, a maior parte dos treinamentos é feita por presos ou famílias voluntárias. Normalmente, aos dois anos de idade, o cão é encaminhado para o deficiente para que eles possam se adaptar um com o outro. Esse período costuma demorar três meses. Se não houver empatia entre eles, o animal é substituído, mas isso é muito raro”.
Itu: uma Estância Turística preparada?
O não cumprimento da lei pelo restaurante de Itu que atende centenas de turistas é visto como uma exceção pelo secretário municipal de Turismo, Lazer e Eventos, Osmar Barbosa. Segundo afirma, a cidade de Itu está apta a receber deficientes visuais que utilizam cães guias. O secretário alega que o ocorrido no estabelecimento foi um caso isolado, de alguém que não estava preparado para tal acontecimento. Ele diz que por algumas vezes a Secretaria de Turismo foi visitada por deficientes visuais acompanhados por seus cães-guias, o que demonstra a capacidade de Itu em receber portadores de necessidades especiais.
O presidente da Prótur (Associação Pró-Desenvolvimento do Turismo da Estância Turística de Itu), Hélio Tomba Jr, comenta. “É fundamental que os empreendimentos turísticos conheçam a lei e respeitem o acesso desse perfil de público aos campings, hotéis, fazendas, pousadas, shopping centers e restaurantes. A Prótur deverá buscar informações com o projeto Cão-Guia, do Sesi, para conscientizar os empresários e equipes de atendimento”, finaliza.
Acolhimento voluntário
Na família Macorin – que há pouco mais de um ano vive em Indaiatuba – nenhum dos integrantes possui deficiência visual. Mas mesmo assim, Leila, o marido Anderson e os filhos, Enzo e Izadora, ganharam a companhia de um cão-guia, batizado de Faro Fino. Voluntários do programa homônimo idealizado pelo Sesi, eles aceitaram acolher o labrador por um ano, durante a etapa inicial do treinamento, chamada de socialização, necessária para que o cão se acostume com situações que serão corriqueiras em seu dia a dia, como, por exemplo, andar de elevador, ônibus, não se assustar com barulho e conviver em sociedade.
Divulgação
Faro Fino faz parte do projeto do Sesi e é treinado pela família Macorin, em Indaiatuba
A mãe, a cabeleireira Leila, conta, orgulhosa, que o filhote recebe um tratamento de popstar na maioria dos locais por onde passa. “As pessoas pedem para tirar fotos, fazem cafuné e, em alguns casos, até trazem água para o Faro beber. No comércio, sempre fui bem recebida e, por isso, me sinto na obrigação de agradecer: quero pedir que recebam da mesma maneira a todos os deficientes, não apenas os cegos, pois a melhor coisa da vida é ser bem tratado. Todo mundo gosta”.
Todos os participantes do projeto são identificados. As famílias recebem a carteira de cão-guia; já os filhotes, por sua vez, ganham placa, guia e lenço – ou bandana – exclusivos. Isso não impede, porém, que situações como as que ocorreram em Itu se repitam. Ela lembra que, certa vez, foi até uma padaria e logo percebeu que outro cliente estava incomodado: ele saiu do estabelecimento, dando a impressão de procurar por uma placa sinalizando que a presença de cães era proibida. Depois, ao ser questionado sobre sua atitude, o sujeito admitiu que primeiro a observou e, em seguida, constatou que a cabeleireira não era deficiente.
Para ela, a pior parte do seu “trabalho” é enfrentar o preconceito das pessoas. Em outra ocasião, estava acompanhada dos dois filhos quando tentou entrar com o labrador em uma papelaria. “A gerente começou a gritar comigo e me perguntou: ‘cão-guia de quem? Aqui não é local público e você não é cega’”, desabafa Leila, revelando que também há quem os crucifique, “embora sejam casos pontuais”. Diante da recepção pouco amistosa, nossa entrevistada decidiu fazer suas compras em um estabelecimento concorrente, onde foi muito bem recebida. “Não tive mais vontade de voltar lá, mesmo depois que o dono me ligou e prometeu que resolveria a situação”.
Até que Faro Fino vá embora – o cão deve ser devolvido ao Sesi na segunda quinzena de março, para que tenha início a segunda fase de seu treinamento, onde ele vai receber comandos específicos – a família vai continuar levando consigo cópias da lei em todos os lugares. A cabeleireira conta que a medida surte efeito, mas, mesmo assim, faz questão de deixar uma mensagem de incentivo aos leitores. “Sugiro a todos que continuem acompanhando o projeto e, se possível, se inscrevam (www.sesisp.org.br/caoguia) para viver essa experiência incrível de adotar temporariamente um filhote. Cachorro é tudo de bom; o melhor amigo do homem”.
Numa perspectiva mais ampla, Leila conclama o poder público a promover campanhas de conscientização. Procurada, a Prefeitura de Indaiatuba informou, por meio de sua assessoria, que, de acordo com o Índice Paulista de Responsabilidade Social (IPRS) – analisado pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) – a cidade se destaca no atendimento às pessoas com necessidades especiais, cumprindo requisitos como a existência de uma comissão permanente e o desenvolvimento de uma série de ações, em diversos setores, para promover a inclusão e tornar todos os espaços públicos acessíveis.
Como parte dessa estratégia, “os veículos do sistema de transporte coletivo já dispõem do espaço para atender aos usuários que estejam acompanhados por seu cão-guia”. Por outro lado, o Executivo afirmou que nenhum caso de impedimento, mesmo com visitantes, foi comunicado ao Conselho de Deficientes (Comdefi). Ainda de acordo com o poder público, Indaiatuba não tem registro de moradores cegos com cão-guia, mas dois deficientes estão na fila de espera para recebê-los. Representantes da Associação Comercial de Indaiatuba (Aciai) também foram convidados a nos conceder uma entrevista, porém, até o fechamento desta reportagem, não obtivemos retorno.
Privilégio para poucos
De acordo com o Censo 2000, há, no Brasil, cerca de 150 mil pessoas cegas; outros 2,4 milhões de cidadãos apresentam grande dificuldade de enxergar. Mas possuir um cão-guia é privilégio para poucos: a quantidade de animais capacitados é inferior a cem. Àqueles que não dispõem de condições financeiras para arcar com os altos custos do treinamento, resta aguardar, por tempo indeterminado, na fila de espera de uma ONG. Isso ajuda a explicar o motivo pelo qual Salto também não possui nenhum usuário de cão-guia.
Na cidade, existem cerca de 70 deficientes visuais, segundo estimativas não-oficiais feitas pela Associação dos Deficientes Visuais de Salto (Adevisa). “Nós entendemos e endossamos todos os benefícios advindos da utilização do cão-guia. Contudo, o acesso a este recurso não é simples. Por outro lado, é importante saber que outras soluções, mais baratas, que também podem melhorar a qualidade de vida”, sintetiza a coordenadora pedagógica, Vanessa de Oliveira Mattozinho, que reitera o convite para que os deficientes visuais se associem a entidade: o contato pode ser feito pelo telefone (11) 4021 – 5053 ou internet, no site: www.adevisa.com.br
Ela lembra que a Adevisa implantará, em breve, dois projetos que visam minimizar a ocorrência de situações desagradáveis. Um deles é um curso básico de Orientação e Mobilidade, onde, em um primeiro momento, serão disponibilizadas 12 vagas. Também está nos planos da entidade – que atende “crianças” de zero a 90 anos – realizar um treinamento nas empresas de transporte coletivo para qualificar motoristas e outros profissionais que atuem no atendimento ao usuário.
“Acredito que a cidade ainda não esteja preparada para acolher com dignidade a todos os deficientes, não somente os visuais. Normalmente, eles são recebidos com receio, dó ou até mesmo com certo desprezo, em decorrência da falta de informação. Ciente dessa dificuldade, a Adevisa irá propor parceria à Prefeitura saltense, para que os profissionais da entidade possam ministrar palestras em diferentes regiões do município”, adianta.
Voltando a falar especificamente dos cães-guias, a Prefeitura de Salto esclarece que os espaços públicos municipais recebem os animais, mesmo aqueles que ainda estão em fase de treinamento. O Executivo ressalta também que a fiscalização, autuação e imposição de multa são competências da Secretaria Especial de Direitos Humanos e que o município só poderia realizar essa tarefa mediante a assinatura de um convênio com o órgão citado.
Completando esse tripé, o presidente da Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Salto (Acia), engenheiro Paulo Takeyama, acredita que esta é, antes de tudo, “uma questão humanitária”. Segundo ele, orientar os mais de 500 associados é uma das prioridades da entidade, fundada em meados da década de 60. “Campanhas de conscientização já estão em nossos planos, mas a ideia é atribuir à iniciativa um alcance mais abrangente, englobando todos os tipos de deficiência”.
No entanto, Paulo faz uma ressalva ao processo de treinamento de cães-guias. “No episódio de Itu, segundo o que foi relatado pela imprensa, o cão não estava acompanhado do deficiente; portanto não vejo ato discriminatório contra uma pessoa cega: sem entrar no mérito da questão, acredito que a socialização pode ser feita de outras maneiras”.