A casa sem alma
Casa também tem alma? Perdoem-me os teólogos, mas acho que tem. Matéria morta tem alma, formada de lembranças da matéria viva.
Casa tem alma no seu vestíbulo, dessas casas antigas, invariavelmente bem encerados, que ficavam abertos e a gente, em criança, só de meia, usava para escorregar. Era engraçado também tocar a campainha e aguardar escondido, por quem vinha atender.
Casa tem alma na sala de visitas, dessas casas antigas, cheia de móveis de madeira e palhinha, super desconfortáveis. A gente morria de medo de furar o assento. As conversas ali tinham que ser curtas, na medida da fragilidade da mobília e da nossa capacidade de equilíbrio. As fotos antigas, na parede, mostravam gente elegante, mas não bonita, meio nariguda, de olhos tristes. Todo mundo sério. Nunca vi foto velha, dessas penduradas, com gente sorrindo. Eu os imaginava sentados na mobília desconfortável: por isso que faziam cara feia!
Casa tem alma na varanda, dessas casas antigas, tão gostosa - a sala do meio - sem os rigores da outra, com sofá de mola, mesa de jantar, a louça branca (Ironstone) sobre o “etajer” (ou buffet como insistiam alguns). Os quadros emolduravam a cena despretensiosa do ambiente. A rede, toda casa que se preza tem uma rede, invenção indígena (e ainda os chamam de ignorantes!!!). A gente se jogava, balançava, ficava enjoado, parava, balançava de novo. Quando aparecia adulto, escondia o que não podia ser lido e fingia dormir. À noite, rezava o terço.
Casa tem alma nos quartos, dessas casas antigas - cama velha, colchão de mola, oratório sobre a cômoda. Alguns ainda com a jarra com a bacia, só de enfeite. No criado mudo guardavam o penico. Quanta gente usava penico! E o medo do quarto escuro, de aparecerem todos os fantasmas que a gente imaginava? No esconde-esconde o quarto era requisitado para desaparecer-se debaixo da cama ou dentro do guarda-roupa.
Casa tem alma na cozinha, dessas casas antigas que tinham fogões a lenha, a marcar a parede de preto. A mesa grande ostentava gaveta (coisa de ituanos!). Ali ficavam as toalhas de linho branco, guardanapos enormes, com as iniciais dos donos da casa. No armário, embutido na taipa, aquela quantidade de pratos, copos coloridos, mantimentos (como se esquecer da caixa da Maizena?), as batedeiras antigas, de ferro, pesadíssimas. Na mesa faziam-se os doces. A gente esperava para lamber a fôrma. Depois dava dor de barriga! Domingo sempre tinha nhoque. A massa crua era virada e revirada sobre a pia. A gente se divertia ao cortar os gominhos do macarrão. À noite assaltava-se a geladeira, saboreando um pedaço do doce, guardado para o almoço em família. No dia seguinte o inquérito para saber-se o autor.
Casa tem alma nos banheiros, dessas casas antigas, com as deliciosas banheiras, revestidas de ágata, onde a gente passava horas assoprando a espuma. Saía com a pela toda engruvinhada. Achava elegante os pezinhos da banheira, pareciam pés de gato. Quando não queria tomar banho ligava o chuveiro e esperava um bom tempo lendo gibi. Depois respingava água no cabelo para satisfazer o cuidado dos adultos.
Casa tem alma nos quintais, dessas casas antigas, sem revestimento, cheios de árvores de fruta. Era o espaço mais democrático da casa, onde podia ficar sem sapato e sujar-se à vontade.
Sempre vivi em casa antiga, cheia de alma. Na nossa Floriano Peixoto havia muitas, todas parecidas, na divisão interna, nos costumes, na felicidade da gente que morava nelas, sem o abafamento das casas novas, de forro baixo e poucas janelas.
Uma das que eu mais gostava de ver e visitar era das Rodrigues de Arruda. Eram três irmãs, já idosas, Iaiá, Maria Luísa e Zuleide, muito espirituosas. A gente as chamava por Paula Leite. Tinham o costume de espiar a rua pela janela, mas com o vidro fechado, tentando ocultar-se. Outro dia desses, me peguei na mesma situação...
A casa enorme era remanescente do tempo em que aquele quarteirão era belíssimo, cheio de construções planejadas, belas de se ver e morar. Mesmo as de comércio tinham fachadas altas, elegantes, distintas. De um tempo para cá a casa das Paula Leite ficou oprimida entre dois edifícios horríveis (bancos Bradesco e o Banespa).
No finzinho do ano passado arrancaram a alma daquela casa antiga. Sobrou somente uma fachada triste, corpo sem vida, como daquelas fotos na sala de visita.
Não sei de onde vêm essas idéias. Fizeram daquela beleza toda um salão sem graça, tentando “conviver o velho e o novo”, especulação e arte juntos. Ora, arte não tem preço!
Devia ter cadeia para essa gente assassina das almas das casas: proprietários, engenheiros e arquitetos, gente órfã de afeto, de passado, de bom gosto. Gente morta!Será que estamos condenados a viver numa cidade inteira sem alma?