A droga do consumismo na infância
Conheci o Fernando na infância. Era o desassossego em pessoa, não parava quieto na carteira, tinha dificuldade de se concentrar nas leituras e vivia todo esfolado de tanto escalar as árvores do pomar do colégio, os bolsos sempre rasgados por não comportarem sua colheita incansável de frutas de todo tipo. Sim, nosso recreio era mesmo num pomar enorme ligado à escola. E não havia ainda a moda da Ritalina e outras substâncias que têm sido receitadas para crianças diagnosticadas com TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção por Hiperatividade.
Fernando, ou infernando, como a maioria por fim o apelidava, dava realmente muito trabalho. Mas dava também alegrias. Surpreendia nas provas com boas notas, era líder nas brincadeiras e, quem sabe para se exorcizar da fama de endiabrado, era coroinha na missa aos domingos. Por motivos óbvios, a função que mais lhe cabia era a de agitar o Turíbulo(vaso de metal preso por correntes utilizado para incensar o ambiente), coisa que ele fazia com claro entusiasmo a ponto de deixar a igreja tão enfumaçada quanto as baladas de hoje. Embora eu e a garotada vizinha nos queixássemos de suas travessuras para nossas mães e professores, no fundo, tínhamos inveja da paciência da mãe do Fernando. Apesar das broncas e reprimendas contínuas ao filho, ela explicava: “Isso é coisa de criança, logo, logo ele cresce e endireita”.
Fernando me veio à lembrança há poucos dias enquanto lia uma entrevista na Folha de S.Paulo, com a Dra. Márcia Angell, psiquiatra americana e professora titular do Departamento de Medicina Social da Escola Médica de Harvard. Considerada pela revista Time como uma das 25 personalidades mais influentes nos EUA, Márcia diz haver um excesso de diagnósticos sobre as crianças: "Estamos dando veneno para as pessoas mais vulneráveis da sociedade". Suas palavras fazem coro com as do psiquiatra brasileiro Raul Gorayeb, coordenador do Centro de Referência da Infância e Adolescência da Unifesp: “Na sociedade do consumo, a dor, o sofrimento, a angústia são sentimentos socialmente inaceitáveis. Ninguém mais suporta enfrentar medos e problemas”. E indo mais além ele completa: “O que eu tenho visto são crianças cada vez mais empobrecidas de espírito. Uma das expressões disso é o consumismo”.
Temos que reconhecer que não é fácil educar uma criança e que nem sempre os pais e professores têm a disponibilidade de tempo e recursos para essa tarefa. E embora existam casos em que a única solução é medicar, temos que refletir sobre os custos posteriores das tantas soluções práticas que em geral são adotadas para se “acalmar” as crianças. Se, ao diagnosticar uma criança como hiperativa, a medicamos, temos que ter em mente que talvez não venhamos a conhecer a pessoa que ela viria a ser em sua plenitude. Se vale pensar que sendo medicada a criança percorreria melhor o caminho de seu desenvolvimento, vale pensar também o inverso.
E isso me lembra novamente o Fernando que, sem remédio nenhum, chegou a idade adulta cumprindo a previsão de sua mãe. Sem qualquer explicação aparente, ele simplesmente “endireitou” dentro do que, para a maioria de nós, significaria ser uma pessoa direita, com bons princípios, valores e conduta exemplar. Até onde soube notícias, o Fernando se formou e se casou com uma moça do interior, em cuja cidade passou a administrar uma das maiores indústrias paulistas que, aliás, seguiu de vento em popa sob sua notável liderança. Ok, nem todos os casos são assim, mas a pergunta pode ser igual na comparação com todos os casos. E se tivessem medicado o Fernando?
Essa reflexão é válida também para todas as formas de se lidar com as crianças. Será que estamos criando nossas crianças para serem elas mesmas ou para corresponderem a um padrão de comportamento delineado por uma visão consumista do que significa ser uma criança saudável? Não é raro, em reuniões escolares ou familiares, a preocupação de muitos pais em balizarem o desenvolvimento de seus pequenos em relação ao que outras crianças de mesma idade já são capazes ou não de fazer em determinada idade. Apelos comerciais tais como: “Todo mundo está usando, só falta você!” ou “Faça como as pessoas inteligentes, use...” certamente contribuem, sem que percebamos, para a construção desses valores baseados na competição e comparação. Importante computar também a influência das mensagens comerciais que geralmente tentam restringir as perspectivas de vir a ser das crianças em três ou quatro aptidões: seduzir, malhar, se produzir e comprar para as meninas e dominar, intimidar e seduzir para os meninos.
Assim, não é somente com medicamentos que podemos ‘moldar’ a expressão genuína das crianças. Estamos moldando a personalidade delas de forma quase automática quando, para que comam direito, ligamos a televisão para distraí-las. Quando, para que estudem, lhes prometemos presentes. Quando, para compensar nossa ausência, lhes trazemos um brinquedo caro. Quando, para evitar amolações, damos-lhes tudo o que pedem. Quando permitimos que passem horas assistindo TV em lugar de extravasarem sua energia criando suas próprias brincadeiras. Quando, para que não se exponham fora de casa, permitimos que se tranquem no quarto diante das telas com os fones no ouvido e longe do nosso contato. Quando permitimos que as mensagens comerciais falem diretamente a elas, convencendo-as de que consumir é melhor que brincar. E quando, ao alegarem alguma inadequação em seus grupos, tentamos bancar-lhes o pertencimento por meio da ostentação de produtos de marca. Tudo, como explicou o Dr. Gorayeb, para se evitar os desconfortos naturais da vida real.
O imediatismo da visão consumista está nos levando a coisificar nossas crianças como produtos que, se não funcionam com a precisão de seus similares, levamos à oficina para consertar. Precisamos nos voltar mais para elas e abrir espaço, físico e afetivo, para poderem mostrar a que vieram e protegê-las com autoridade e limites, sem ‘engessar’ sua personalidade. Precisamos aceitar que elas sejam elas mesmas sem terem que se parecer com ninguém. Precisamos impedir que o consumismo, este sim comparável a uma droga sedutora, desestabilize a espontaneidade de nossas crianças com o estímulo a comportamentos e hábitos adultos de consumo para os quais elas não estão preparadas, principalmente os não saudáveis. Em lugar de problema, as crianças são o remédio para o futuro da humanidade, ao contrário da velha ganância material que, como lamentou o poeta: “Não tem remédio nem nunca terá”.