A força do amor
Eram um casal de velhinhos. Tinham passado juntos a maior parte de suas vidas, mais de meio século.
Sobreviventes de acirradas batalhas, lutas pela sobrevivência digna num mundo hostil e competitivo, preservando sempre o seu amor, acima de todas as implicações, todas as diferenças, todas as imperfeições, estavam ainda, próximos do fim, tão unidos como sempre estiveram, iguais rochas intocadas pelas tempestades da vida, vitoriosos e realizados.
Ela era muito prática, pouco afeita a sentimentalismos e até chocou os filhos quando, poucos dias depois da morte do marido declarou que ia doar tudo o que lhe pertencera.
- Se ele não está mais aqui para usar, de que vale guardar tudo isso? Vou dar para alguém que possa aproveitar.
E assim o fez. Nunca ouvira a opinião de ninguém em suas decisões. Os filhos continuavam a ser para ela como crianças que não sabiam de nada. A única pessoa a quem admitia dever satisfações era o marido que já não estava mais aqui.
Juntou tudo, roupas, calçados, miudezas. Quem a visse poderia até pensar que ela não estava sofrendo e que queria apagar toda a lembrança do marido. Que pretensão a nossa, quando nos atrevemos a analisar os sentimentos alheios!
E, então, ela pegou a manta de lã que tinha sido presente de uma neta. Ele amara aquele presente. Já então, muito doente, em uma cadeira de rodas, estava o tempo todo com ela, cobrindo as costas ou as pernas. Sentia sempre muito frio, mesmo com a temperatura alta.
Uma ternura muito grande a envolveu ao pegar a manta. Apertou-a contra o peito e sentiu-lhe a maciez e o aconchego como um caloroso abraço. Não havia dúvida. Alguma coisa dele ficara impregnada em suas malhas. Uma energia, um fluído, uma vibração, um pouco de sua vida.
E ela guardou a manta. A partir de então, todas as noites, a levava para a cama. Estranhamente, sentia-a como um elo que a ligava ao companheiro que devia viver ainda em algum lugar e do qual ela se recusava a distanciar-se.
Algumas vezes se emocionava e a encharcava de lágrimas, mas, logo de manhã, antes de abrir a porta do quarto a escondia no fundo da uma gaveta. Não queria que os filhos percebessem. Sabia que eles eram excessivamente preocupados e se soubessem não iriam compreender.
A mãe que eles sempre conheceram era durona, pouco dada a sentimentalismo. Iam achar que ela estava triste, deprimida ou até caduca. Iam querer levá-la ao médico, ao psicólogo ou sei lá mais aonde.
- Não!
E assim foi passando o tempo.
Para os demais, a morte dele foi ficando distante, relegada ao esquecimento, mas não para ela. Embora pouco falasse no assunto e levasse a vida como se estivesse perfeitamente ajustada à sua condição de viúva, passava as noites abraçada à manta, sentindo-o tão presente quanto sempre estivera em sua vida e em seu coração desde os longínquos dias de sua juventude.
Numa tarde muito fria, uma mulher com uma criança nos braços bateu a sua porta. Pedia um alimento para si e um pouco de leite para o bebê. Ela, depois de dar um prato de comida a pedinte e encher a mamadeira, observou que a criança, mesmo depois de alimentada, estava chorando, mal agasalhada, sentindo frio.
Não teve dúvidas. Foi buscar a manta, ajudou a mulher a embrulhar o filho e sorriu satisfeita ao ver que o bebê acalmou-se e dormiu confortavelmente aquecido. Nem por um momento, lamentou ter dado a manta que tanto estimava a uma desconhecida. Tinha feito o que achara que devia fazer e estava feliz e despreocupada.
À noite, deitou-se e adormeceu profunda e tranquilamente. No dia seguinte os filhos estranharam que ela não tivesse se levantado às primeiras horas da manhã como era seu hábito. Não se lembravam de tê-la visto, alguma vez, levantar-se depois do sol nascer.
Então, a filha entrou no quarto e constatou, assustada, que ela não estava mais ali. Até o médico surpreendeu-se:
- Ela estava tão bem! É inacreditável!
Que sabem os médicos dos mistérios da vida e da morte?
Que sabemos nós, pobres humanos, das energias e dos fluídos?
Com que medida podemos medir os sentimentos e ponderar a força do amor?