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Publicado: Quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A infância roubada

A infância roubada
Que tipo de recordação você tem de sua infância?

Há palavras que tocam o coração. Não só palavras, mas também imagens, sons e cheiros. Quem nunca experimentou a sensação de reviver a infância ou uma determinada época da vida ao sentir um cheiro ou ouvir um barulho familiar? Certamente a ciência tem suas razões para justificar esse fenômeno. Mas não é o que pretendo. O que motiva esta crônica são palavras que não saem da minha cabeça.   

A infância sempre me cativou. Primeiro, pela própria vivência: nascida na cidade do interior, numa casa repleta de carinho, desfrutei de um precioso tempo recheado de imaginação, liberdade e criação. Foram muitas às vezes em que imaginei um mundo à parte e o construí com criatividade: caixinhas de fósforos transformadas em máquina fotográfica. Cabos de vassoura e pedaços de pano, em cabana de índio ou folhinhas e pedrinhas misturadas, em comida de gente. E depois, pela formação profissional que me fez compreender cientificamente a sensação que já me acompanhava: criança feliz é adulto sensato, equilibrado e bem resolvido.   

Uma grande parte de nossas crianças é maltratada, humilhada, machucada. Quando não física, emocionalmente. Muitas delas abandonam a casa dos pais e passam a viver na rua, perambulando em bandos, limpando vidros de carro, coletando e comendo lixo, pescando caranguejos no lodo, prostituindo-se. Outras são alvos da tirania de pais insatisfeitos com a vida, vítimas de ofensas e revoltas.  Enfim, são crianças carregando um “peso” maior do que podem suportar... Vivem uma dura inversão de papéis: não são elas que dependem de cuidados dos pais,  mas os pais que precisam dos filhos para viver.  

De certo, a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990 muito tem contribuído para transformar essa realidade. No entanto, o trabalho, a humilhação e a violência, e não a brincadeira, ainda serão as lembranças de muitas crianças. Que cheiros, imagens, sons e palavras estarão registrados nos corações dessas crianças? 

O maranhense Humberto de Campos, conceituado escritor e poeta do começo do séc. XX, já tinha nos alertado ao dizer que “na infância, o que se ouve ou o que se vê, não sobe para o cérebro. Desce para o coração e fica escondido.” Lya Luft também, ao afirmar que “a infância é o chão sobre o qual caminhamos o resto de nossos dias.” 

Por isso as palavras de Dona Rosilene não saem da minha cabeça. Elas relatam a história de uma mulher baiana, trabalhadora, analfabeta e religiosa. Em uma das minhas idas ao sertão da Bahia, Rosilene me contou que o líder da sua igreja lhe ensinou que Deus não permite o uso de preservativos, nem a realização de vasectomia ou laqueadura e, muito menos, a prática do aborto. Dona Rosilene tem 8 filhos e todos  já trabalham, inclusive a menina de 8 anos. Ela também acredita que o casamento de homem e mulher férteis que excluem os filhos é nulo e atribui à vontade de Deus, a quantidade de filhos que tem.                                                                             

As palavras de Rosilene tocaram meu coração, provocando não mais as doces sensações da minha infância, mas o horror e a aflição a esse controle religioso que insiste em manter a grave situação da infância brasileira. 

É preciso sim planejar e controlar a natalidade em nosso país. Porque isso significa garantir a todos as mesmas respostas às perguntas que encerram essa reflexão: Que tipo de recordação você tem de sua infância? De uma fase feliz, despreocupada, alegre? Sorte sua. Essa é a infância que todos gostariam de ter vivido.  Essa é a infância roubada de milhares de crianças do Brasil de hoje, filhos de famílias desestruturadas, sem educação, dominadas por religiões irresponsáveis e crentes de um Deus que não existe.

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