A liberdade, em duas telas
“Talvez não haja escolar algum, de ontem e de hoje, que não tenha, sempre vivo, na imaginação, o semblante suave do Patriarca da Independência, na reprodução litográfica do famoso painel de Boulanger. Na delicadeza dos seus traços, na expressão meiga dos seus olhos, sente-se como que a presença conselheiral de um homem que, morto, continua sendo um símbolo da Pátria pela qual batalhou até romper as algemas que a prendiam ao jugo estrangeiro. Vale mais do que o texto, muitas vezes confuso dos livros, a pintura de um perfil ou de um acontecimento histórico, para inocular nos corações da juventude, a verdadeira concepção de Pátria. Caxias, Feijó, Rio Branco e outros vultos da nossa gloriosíssima história conservam suas fisionomias gravadas em nosso pensamento, tal qual as vimos, emolduradas, nas paredes das nossas antigas salas de aulas ou estampadas nos livros didáticos a que recorremos para o estudo de assuntos pátrios. Conhecemo-las, familiarizamos com elas, como se as tivéssemos contemplado ao tempo em que viveram, como se houvéssemos vivido contemporaneamente com esses heróis nacionais. E que são Caxias, José Bonifácio, Rio Branco, senão a própria Pátria?”
“Que dizer-vos , então, diante do histórico quadro de Pedro Américo, “O Grito do Ypiranga” ? Haverá cena mais impressionante, mais real, mais perfeita em traços pictóricos, que nos dê a imagem do monumental acontecimento? Aquele carro de bois, com o carreteiro à frente, em típica demonstração de ingenuidade, de simplicidade e de bondade provinciana... Que pensaria o patrício nosso, estacado de pés no chão, calças arregaçadas , diante do tropel? Cavalos alvoroçados, resfolegantes, como que participando galhardamente do feito, cavaleiros riscando o ar com as suas espadas pontiagudas, enquanto os bois filosofam na sua eterna calma, na sua proverbial atitude passiva... Uma choupana, de felicidade, ninho, talvez de felicidade, invejado por palácios de requintada nobreza... Testemunha silenciosa do tumultuado acontecimento... E, por fim, o irrequieto D. Pedro, carecedor de melhor elucidação na sua complicada história, elegantemente assentado no dorso do seu corcel, a pronunciar a frase que copiara ao talento político do Patriarca, a frase mais célebre de toda a história: “Independência ou morte!” A tela genial do mestre paraibano fala mais alto e com maior esplendor do que muitos livros de letras miúdas e baralhantes. Ela impressiona pelas suas linhas, convence pela realeza do fato e conforta pela certeza da liberdade conseguida. Ela revive uma partícula poética de quinhão pátrio, denunciando, com a claridade e a propriedade das suas tintas, a própria hora solar e, com a indiscrição do gênio pictórico, uma cena bucólica, surpreendida nos seus momentos, podíamos dizer, de idílio.”
Não estarão nem poderiam estar iludidos os leitores em cogitar que os dois parágrafos anteriores, sejam da lavra do titular desta velha coluna. Quem lhe dera essa facilidade no manejo das palavras e na criação de expressões de altanaria, com tanta vivacidade e entusiasmo.
Para marcar a data maior da brasilidade, a da Independência, localizou-se entre os guardados deste colunista, uma edição de “A Gazeta de Itu”, Ano XI, número 555, de 8 de setembro de 1946, da qual se extraíram os tópicos acima, parte de uma longa palestra intitulada “Semana da Pátria”, proferida então pelo autor, Humberto de Mattos, habitual pseudônimo do saudoso jornalista Euclydes Marins e Dias, ele e papai, Luiz de Campos Filho, amigos íntimos, beletristas eméritos que foram.
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- bernardo campos