A prima Eneida
Rosalina revira a carta na mão, surpresa:
Eneida! Quem será essa Eneida? Parece que não conheço ninguém com esse nome. Pelo menos ninguém que me escreveria uma carta.
Fez o obvio. Abriu o envelope e inteirou-se do conteúdo da carta. À medida que lia, porém, a surpresa e o horror tomaram conta dela.
Rosalina fora uma das filhas do coronel Marcondes, homem severo que trazia as três filhas, como se dizia na época, “na rédea curta”. As meninas pouco saiam de casa, sempre vigiadas, cheias de normas e de horários. Mas uma delas, a Clarita, era diferente das outras.
Muito mais bonita e voluntariosa, não se submetia ao pai. Enfrentava, discutia e acabava fazendo tudo que queria. Quando se candidatou à miss na cidade, o pai quase enfartou e quando ganhou, foi para a Capital e acabou seguindo a carreira de modelo e tirando até fotografias para revistas masculinas.
O pai ficou furioso e acabou dando-lhe um ultimato: ou ela voltava pra casa e se dispunha a viver decentemente (dentro de seus padrões) ou desaparecia para sempre. Ela escolheu a segunda opção e a partir daí só souberam algumas vezes dela quando foi notícia no jornal ou em algum programa de televisão. A última coisa que souberam foi que se casara com um rico industrial. Isto já fazia mais de vinte anos.
As irmãs tinham por ela um misto de inveja, admiração e bronca. Ela era a mais bonita, mais popular e mais corajosa, pois fizera o que secretamente as outras gostariam de ter feito também, só que não tiveram oportunidade nem coragem.
Mas o tempo passou. Rosalina casou-se. Luciana entrou para um convento, os pais faleceram. Cada uma seguiu o seu caminho e as três irmãs distanciaram-se.
Esta carta agora contava algo terrível. Clarita e o marido acabavam de falecer, vítimas de um acidente e Eneida era sua filha. Na carta ela dizia que estava completamente só e como Rosalina era a única parenta de que tinha notícia, gostaria de passar uns tempos com ela, até que pudesse assimilar o acontecido e resolver o que ia fazer de sua vida. É claro que Rosalina não ia negar acolhida a sua única sobrinha. Ela podia vir sim. Ficar o quanto quisesse. Podia até ficar para sempre que ela ficaria muito satisfeita de tê-la consigo.
A família toda esperou pela hóspede com muita curiosidade. Como será que ela era? Seria bonita como a mãe? Uma adolescente? Uma mulher feita? Ela não podia ter muito mais de vinte anos.
As primas estavam na maior expectativa. Ela devia ser muito interessante. Garota viajada, que conhecia o Mundo todo, que tinha muito dinheiro...
- Ela vai agitar a rapaziada da cidade, você vai ver!
- Só espero que o Miguel (o namorado) não se encante demais com ela!
- E que ela não resolva dar em cima do Edu!
- Que nada! Ela deve ter pretendentes ricos e importantes para escolher.
- Não sei não. Se estivesse com essa bola toda não estaria pedindo arrego para parentes que nem conhece.
- Credo! Ela acaba de perder os pais. Deve estar arrasada!
- É mesmo! O mínimo que temos que fazer é dar a ela todo o apoio de que ela está precisando.
Ela chegou no seu carro com o motorista. Desceu, alegre, gesticulando.
O rapaz foi logo dizendo o que todos, surpreendidos, já tinham notado. Eneida era surda-muda.
Antes que alguém pudesse entender bem a situação, ela já estava cumprimentando todos alegremente, fazendo sinais inconfundíveis de saudação, gesticulando para o motorista que traduzia para os outros a sua linguagem de sinais.
Nos dias que se seguiram houve uma adaptação muito melhor do que a esperada. Eneida era simpática, inteligente e amável. Estava o tempo todo com um bloquinho onde escrevia os recados que complementava com gestos que Sílvio, o motorista, interpretava e que, em breve todos começaram a entender.
Eneida pretendia montar uma casa, mas os tios protestaram:
- Pra que isso? Você pode perfeitamente ficar conosco. A casa é tão grande! Você pode ficar aqui com o seu motorista sem nenhum problema. E ela ficou.
Desde os primeiros dias houve entre ela e as primas uma empatia muito grande. Maior, talvez, do que se tivessem crescido juntas.
Eneida parecia não se dar conta de sua deficiência. Ia a festas, fazia amizades, sempre com seu caderninho e seu motorista interprete. Quem a visse participando ativamente dos bailes, dançando com desenvoltura e prazer, não poderia imaginar que ela não estava ouvindo a música...
Em pouco tempo toda a moçada começou a se interessar pela língua de sinais e ela resolveu, com ajuda do Silvio, dar umas aulas voluntárias nas escolas, ensinando, a título de curiosidade, como se comunicar com os surdos.
E foi assim que Eneida, que no começo tinha sido vista como alguém excepcional, agora fazia parte da turma sem qualquer restrição. Todos acharam muito natural quando o Hamiltom se apaixonou por ela e os dois resolveram casar-se.
Afinal a gente não aprende o inglês, alemão japonês ou chinês?
A língua de sinais nada mais é do que outro idioma
Só é deficiente quem não procura superar suas próprias limitações.
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