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Publicado: Segunda-feira, 12 de julho de 2010

Ana e Daniel

Hora do lanche.

Os funcionários entram em grupos na cantina e acomodam-se nas mesinhas, conversando.

Elaine estava só. Assumira o seu posto há poucos dias e não tivera tempo de fazer amizade com os colegas...

Um rapaz sorridente de belos olhos cinzentos aproximou-se:

- Posso fazer-lhe companhia? É meu primeiro dia de trabalho e, pelo que vejo, você também é novata por aqui.

- Oh! Sim!

Elaine aceita prazerosa a companhia do novo colega com uma leve impressão de já conhecê-lo. Aqueles olhos cinzentos lhe pareciam de certa forma familiares.

Bobagem! Ele disse que seu nome era Douglas. Não lembrava de ter conhecido ninguém com esse nome.

Os dois conversaram sobre assuntos triviais. O trabalho na repartição, o concurso que prestaram, cursos que fizeram, etc.

No dia seguinte, quando Elaine chegou, ele já estava sentado e chamou-a com um aceno.

Tornou-se, desde então, um hábito. Todos os dias tomavam o lanche juntos e conversavam.

Elaine tinha pouco o que dizer sobre si mesma. Filha de família classe média, teve pais que lutaram bravamente para dar-lhe o melhor possível.

Formara-se no ano anterior, prestara o concurso e agora estava muito bem colocada.

Já o Douglas tinha muitas passagens interessantes para contar.

Pertencia a uma família paupérrima e desestruturada. Não teve qualquer apoio por parte dos pais. Só maus exemplos.

Mas, era ambicioso e conseguiu estudar, fazer um curso superior e agora estava bem colocado, com um futuro promissor.

Contou como cursara a Faculdade, trabalhando e ganhando muito pouco.

- Fiz tudo que você pode imaginar para sobreviver. Tomava uma única refeição por dia e muitas vezes tive que lavar pratos para pagá-la. Emprestava livros dos colegas e pedia-lhes as roupas que não queriam mais.

Negociei tantas vezes a mensalidade da escola que acabaram me dando uma bolsa.

A única coisa que nunca fiz foi roubar.

- Puxa! Você merecia uma condecoração. Bem poucos conseguem chegar aonde chegou com tantas dificuldades, sem nenhum deslize.

- Devo isto a uma garota chamada Ana que conheci muito pouco, mas que foi muito importante na minha vida. Acho que foi a lembrança dela que me sustentou a decisão de vencer na vida custasse o que custasse.

- Uma namorada?

- Não! Ela nem sequer sabia o meu nome, pois eu lhe disse que me chamava Daniel.

- Por que isso?

- É uma incrível história. Conheci-a em uma situação muito constrangedora. Um dia talvez lhe conte tudo...

- Que mistério hein! Deixe-me ver se adivinho...

Você entrou, por engano, no toalete feminino...?

- Não!

- Então, foi ela que entrou no masculino...?

- Também não. Foi muito pior do que isso!

Os dois riram.

A sirene tocou. O intervalo terminou e cada qual voltou ao seu posto de trabalho.

Alguns anos antes

O dia parecia ser semelhante a todos os outros.

Os pais de Elaine foram logo cedo para o trabalho e ela para a escola.

Voltou ao meio dia, almoçou, deu uma arrumadela na casa e passou o resto da tarde estudando.

À tardinha quando se dispunha a preparar uma sopa para o jantar, ouviu, de repente, um movimento na rua. Carros de polícia, tiros.

Abriu a porta da cozinha para espiar e um garoto, pouco mais velho do que ela, com um revólver na mão, pulou o muro e pediu-lhe.

- Deixe-me entrar. Eu juro que não fiz nada. Estava com eles, mas não fui eu quem atirou nem roubei nada.

O menino tinha enormes olhos cinzentos que pareciam sorrir apesar de estar apavorado e Elaine não teve dúvida:

- Entre naquele quartinho lá do fundo. Tem uma cama e um banheiro. Você pode ficar lá esta noite.

Nem havia terminado de falar e ele já estava lá dentro.

Elaine estava agitada, um misto de medo, curiosidade e ternura por aquele garoto sujo e despenteado, mas que tinha olhos maravilhosos. A aventura ao mesmo tempo a amedrontava e fascinava.

Terminou de preparar a sopa e, antes que os pais chegassem, levou um prato para ele que comeu com apetite.

Nos dias seguintes, Elaine o manteve escondido dos pais. Estes saiam muito cedo e voltavam à noite muito cansados. Jantavam e iam dormir. Nem pensavam em sair no quintal, muito menos ir mexer no quartinho do fundo.

Elaine pouco a pouco foi ficando mais à vontade com o rapaz. Passavam parte da tarde conversando.

Ele contou-lhe que trabalhava na feira olhando os carros e carregando sacolas para as madames. Ganhava uns trocados que levava ao padrasto, todos os dias, mas este reclamava que era muito pouco, que ele já tinha idade para fazer alguma coisa mais rendosa.

O padrasto já tinha sido preso várias vezes por furto e tráfico. Sabia muito bem o que ele estava insinuando.

E, então, apareceu a oportunidade para participar de um assalto. Mas foi infeliz. Acabou havendo um assassinato e todos fugiram sem roubar nada. E agora ele estava ali acuado, envergonhado, amedrontado, sem saber o que fazer.

Elaine aconselhava-o repetindo as surradas frases de efeito:

- O crime nunca compensa. Todo bandido acaba se dando mal. Ninguém encontra a felicidade por caminhos escusos, etc.

Ele a escutava com uma ponta de ironia.

- Você parece à ministra de uma igreja que vai fazer visitas na favela, fala igual a ela.

- Pode crer que temos razão. Promete-me que não vai mais se meter em confusão?

-Prometo. Ainda vou ser um vitorioso. Você vai ver. Nem sei como agradecer o que você fez por mim.

-Não precisa agradecer. Foi muito bom ter você aqui estes dias, mas, até o final da semana você tem que ir embora. Meus pais aproveitam o sábado para fazer faxina. Se eles descobrirem você aqui vão entregá-lo à polícia e são bem capazes de me dar uma surra.

- Você não me disse o seu nome.

- Nem você, o seu.

- Meu nome é ... Daniel...

- E o meu é ... Ana...

No dia seguinte o quartinho amanheceu vazio.

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