Cinquenta anos...e agora?
Esta crônica ficou em primeiro lugar no concurso de Literatura promovido pela Universidade Federal Fluminense (UFF) , que teve como tema “50 Anos... E Agora?”
O range-range da velha cadeira de balanço só cessava quando dona Benedita pegava no sono. Era uma velha casa com piso de tábuas. Tudo rangia por ali.
- Dona Benedita, tem um homem lá no portão.
- Então pode mandá-lo embora, pois não estou esperando ninguém.
- Ele está forçando o portão.
- Solta os cachorros.
- Agora está mexendo na corrente que fecha o portão.
- Solta os cachorros já falei.
- O homem está chacoalhando o portão.
- Chama o Teodoro.
- Hoje é domingo, folga do Teodoro. Esqueceu? O homem está tirando o terno.
- Chama a polícia, deve ser um tarado.
- Ele está tentando subir no portão.
- Tomara que se esborrache no chão.
- Ele passou uma perna por cima do portão. Agora está sentado lá em cima.
- Deixa ele, se reparar bem vai ver que aqui não tem nada que possa interessar nem a ele nem a ninguém. Já-já ele se enjoa e vai embora. É sempre assim. Me traz um café.
Sentado no portão o homem percebia que já não era mais o mesmo. Quantas vezes tinha pulado aquele portão? Agora não encontrava coragem para o salto.
- Esse café está muito fraco e além de tudo está muito doce.
- Mas foi a senhora mesma quem deu a ordem para fazer o café mais fraco, esqueceu? O homem continua sentado lá em cima do portão.
- O Teodoro deveria ter eletrocutado esse portão.
- Mas a senhora nunca vai esquecer essa história?
- Que história?
- Já faz tanto tempo... A senhora deveria passar uma borracha e seguir a vida.
- O que você entende da vida? Eu tinha vinte e cinco anos, a idade que você tem hoje. Era uma menina quase...
- Olha, agora que o homem no portão tirou o chapéu deu para ver que os cabelos dele são todos branquinhos. É um senhor.
- Esse café além de fraco e sem açúcar agora já está frio.
- Eu vou esquentar para a senhora.
-Não. Quantas vezes já falei que não tomo café requentado.
- Está bem, então vou passar outro.
- Não quero. Quem está no portão?
- Não sei. É um senhor que nunca vi antes. A senhora não quer ir dar uma olhada?
- Não.
O homem lá no portão, ao sentir que o cão já não era uma ameaça, passou, com dificuldade, a outra perna para o lado de dentro do portão.
- Nossa, o homem pulou. Que perigo. Um senhor de idade fazendo essas estripulias...
O homem atravessou os quase cinqüenta metros que separavam o portão da varanda ajeitando seu terno. Com o chapéu batia nos braços e nas pernas a fim de limpar o pó da estrada de terra que levava até a chácara de Dona Benedita.
- Ai, eu estou ficando nervosa. O homem vem vindo para cá.
- Vai lá dentro passar um café e traga duas xícaras.
- Mas a senhora disse que não queria.
- Não discuta e faça o que eu estou mandando.
Dona Benedita não chegou a ficar um minuto só.
- Dita? Sou eu.
- Por que você voltou?
- Por que não se vira? Como pode saber quem eu sou? Você está com o mesmo cheiro de lavanda.
- E você com a mesma voz, só um pouco mais velho.
- E as crianças?
- Crianças?
- Você deve ter notícias deles.
- Puxaram ao pai. Sem notícias.
- Dita,o tempo passou, somos pessoas diferentes.
- Eu sou a mesma pessoa. Continuo esperando o dedal que você foi comprar.
- Puxa vida,o dedal! Nem me lembrava. Passou muito tempo.
- Vá embora. Você sabe muito bem como sair sem fazer barulho ou deixar vestígios. Já fez isso uma vez, tem prática em abandonar as pessoas. Vá.
- Dita, isso foi a cinqüenta anos, de lá para cá...
- De lá para cá nada aconteceu. Nada mudou.
- Se nada mudou então você ainda gosta de mim, pelo menos um pouquinho.
- Eu não gosto de você, eu te amo como sempre te amei. As suas roupas estão no teu armário como há cinqüenta anos. Não mexi em nada. A tua cama está arrumada e seu roupão continua no banheiro. Tudo como estava.
O homem entrou na casa e quase derrubou o café que a moça levava para a varanda.
- Onde ponho o café, Dona Benedita? Não vai me dizer que esse homem é o tal.
- Claro que não vou te dizer nada. Põe o café aí e entra.
A menina entrou e quase trombou com o homem que vinha saindo com uma camisa furada nas mãos.
- Essa camisa está toda descosturada embaixo do braço.
- Desculpe, não pude costurar, pois você não trouxe o dedal.
- Isso faz cinqüenta anos Dita.
- Eu sei, pois mastiguei cada segundo desses cinqüenta anos.
- Eu também tinha vinte e cinco anos, era um rapaz, quase um moleque.
- Um moleque. Um moleque lindo. Todo queimado de sol, as mãos ásperas e as unhas grandes sujas de terra. Nunca soube lavar as mãos direito.
- Eu quero te olhar Dita, vira para mim.
Benedita ajeitou o corpo na cadeira de balanço e dando quase um salto sentada com as mãos agarradas nos braços da cadeira, girou a cadeira cento e oitenta graus. Permaneceu sentada agora de frente para o homem.
- Fiquei te esperando. Todo mundo falava que eu era uma sonhadora, que você nunca voltaria. “Imagine se um homem que sai para comprar um dedal e simplesmente desaparece por quase cinqüenta anos sem dar nenhuma explicação vai voltar para casa. Claro que ele não volta Benedita”. Eu tinha certeza que você voltaria. Sabia. Te esperei.
- Acontecem coisas na vida da gente.
- Acontecem. Quando você menos espera elas acontecem.
- Esse café é fresco ou é jeito dele.
- Fresco.
A menina escutava tudo atrás da porta da sala. Estava curiosa e achava que poderia escutar algum detalhe novo, alguma coisa que Dona Benedita tenha omitido ou esquecido de propósito.
O homem serviu o café para ele e para ela.
- Obrigada.
- Nada.
- Toma que o café vai esfriar.
- Eu tinha medo que as coisas que você escrevia nas cartas fossem verdade. Que você estava ótima, feliz da vida, radiante, vivendo uma vida nova, cheia de amigas entrando e saindo da casa.
- Era assim que eu queria que fosse.
O homem arrastou uma espreguiçadeira para perto da cadeira de balan&cc
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