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Publicado: Quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Conto de Natal

PEDRO PEQUENO

Lá estavam eles, o Pedro e a esposa, na frente do Bar do Jorge, sentados na soleira ampla de cimento, de uma das portas. O local se fazia também de estação rodoviária. Era o ponto de onde saíam as jardineiras com destino a Belo Horizonte. Longa jornada, de Montes Claros até lá. Alguns parentes os acompanhavam, nessa despedida. Os pais dela, e dele, dois irmãos. Vão com Deus, diziam. Mandem notícias.

Da capital mineira, Pedro e Dora, rumaram para outra capital, São Paulo. Esperançosos de arranjar emprego e melhorar de vida.

Cumpre dizer desde logo que o personagem Pedro, era na verdade o senhor Joel Castro de Lima. Pedro, um apelido carinhoso, a que se adicionou outra referência pelo fato de, em estatura, nem ele próprio saber direito se sua altura alcançava um metro e quarenta e cinco ou metro e meio. Perguntado, limitava-se a esclarecer simplesmente que “era isso mais ou menos ou por aí”, consoante o linguajar típico da região de origem.

Quieto, algo sisudo, de poucas palavras, mas daquelas criaturas advindas de gente simples, que primam pela honradez e honestidade. Dora, prendada, dona de casa. Casal, pois, perfeito, dentro do que realmente seja possível desfrutar, com sabedoria, numa vida a dois.

Um primo, já em São Paulo há dois anos, o acolheu nos primeiros dias da chegada do casal. Confiara-lhe em carta que tinha onde o colocar, embora no interior.

Somente nessa ocasião – estava-se na década de cinquenta - o Pedro ficou realmente sabendo de que ocupação se tratava e onde. A cerca de cem quilômetros de São Paulo, numa das mais antigas cidades do país, à época pitorescamente ornada de casario antigo, ao molde das cidades mineiras. Infelizmente, já havia começado, aos poucos, a derrubada de verdadeiros monumentos, sobrados principalmente, expoentes de autêntico relicário arquitetônico daqueles tempos.

- Vou me comunicar, dissera o primo, com o senhor Gonçalves, proprietário de pequena chácara bem próxima da cidade.

Nela, além da sede, na verdade apenas uma residência algo rústica, de conforto relativo, havia também outra casinhola, mais simples. Ele, Gonçalves, empreiteiro prático e sem registro, especializado em demolições, morava na cidade.

Ainda em São Paulo, no dizer do primo, ficaria acertado então que o Pedro e a Dora cumpririam a condição de caseiros, ela a permanecer na chácara e ele livre para o trabalho com o mesmo patrão. Assim foi proposto e assim foi feito.

De novo embarcados na jardineira, para desta vez uma viagem bem mais curta, mesmo assim ainda penosa e demorada, com trechos não pavimentados da estrada, o rio Tietê a serpentear ao lado. Mais de três horas de viagem. Sem falar das mil e umas paradas. Pedro e Dora, mãos dadas, às vezes se entreolhavam e esboçavam leve sorriso. O mutismo deles, entanto, poderia ser traduzido como se fora uma disfarçada indagação, à moda de quem perguntasse o que seria deles. A preocupação, se houve, era naquele caso sublimada pelo amor sincero e bem plantado que unia marido e mulher. No aperto das mãos, de iniciativa dela, como que buscava e conseguia serenar um mínimo de incerteza que talvez pudesse assomar à mente do esposo.

Uma vez chegados à cidade, o senhor Gonçalves os aguardava. Os modos e a imagem indefectível do casal simples de mineiros, permitiram que fossem diretamente abordados e saudados, Pedro e Dora, dispensada qualquer apresentação, sem medo de errar da parte do novo patrão.

Acomodados, passageiros e malas surradas no velho Ford 42, enquanto eram conduzidos à chácara, tiveram a oportunidade de uma vista parcial da cidade e até, quem sabe de propósito por parte do recepcionista, com passagem pelas igrejas centrais. O casal, de fé convicta e profundamente religioso, fez um comentário inicial, o de que aquelas impressões primeiras lhes eram agradáveis e de certo modo até familiares, justamente pelo portal elevado e janelas largas das residências, que faziam lembrar as casas das comunas típicas das Minas Gerais.

Devidamente instalados, Dora, competente e dedicada, ao manter em ordem a casa principal e a sua; Pedro, de resoluta disposição para o trabalho. Tais qualidades deram ao dono da chácara a certeza de que havia acolhido pessoas insuspeitas e que jamais lhe trariam problemas.

Nas duas primeiras semanas, pedreiro habilidoso, o personagem principal desta história se desvelou antes em consertos e reparos de ordem geral, além de pinturas, por deixar a chácara já de começo com uma aparência melhor.

Quinze dias depois, então, foi apresentado ao grupo de trabalhadores, aos quais caberia um serviço de longos meses em termos de por abaixo todo um enorme prédio, mas ainda em perfeitas condições de uso. Enorme, não propriamente quanto à verticalidade e sim na projeção em seu sentido horizontal.

Mantém-se, habitualmente, a boa conservação nesses casos, principalmente quando tais edificações permanecem habitadas. O próprio uso contínuo, de imóveis antigos, se incumbe de corrigir a tempo todo tipo de desgaste ou avaria que os acometa.

 Absolutamente sólido, de dois pavimentos, tratava-se na verdade de um majestoso Convento das Irmãs reclusas. Ocupava a quase totalidade de uma quadra, localizada dentro da zona considerada central, de elevado valor comercial portanto, num município impregnado de religiosidade e de história. As ocupantes daquela comunidade tinham sido transferidas para um local próximo, mas de construção moderna e vistosa, que ainda existe. Notável obra de engenharia de linhas arrojadas, projeto de profissional de renome. As queridas freiras dessa Congregação se caracterizam por adotar vida monástica, de trabalhos e orações.

Detalhe importantíssimo: contígua ao Convento e parte integrante de um mesmo complexo, uma belíssima igreja, aberta porém todas as manhãs ao público, com a celebração de missa diária. A capelania era exercida por frades,  moradores muito próximos, trezentos metros se tanto, cujo mosteiro domina uma das praças centrais.

Chegados ao local e somente ali ao tomar conhecimento do tipo de trabalho que lhes era cometido, o Pedro dentre eles, mesmo sem palavras e recatado, se pôs a pensar. Mas por que a demolição? Conhecedor, constatava a solidez das paredes, o perfeito estado das janelas, piso em geral de boa qualidade... por que?

Como havia extenso pomar e jardins, áreas amplas ainda livres, nos primeiros tempos, o corte de árvores e remoção do entulho predominaram naquela empreitada. Também aí, as machadadas iniciais como que repercutiam no coração daquele homem bom. Mas cumpria ordens. Chegou a sonhar de si para consigo que, fosse-lhe dado cuidar das árvores frutíferas e da horta fértil e rica de variedades, somente com o resultado delas iria auferir boa renda.

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