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Publicado: Quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Conto de Natal

Os Silva Moraes se constituíam sem dúvida numa família ideal e exemplar. Não por causa de grandes feitos e maiores conquistas, e sim em virtude muito mais das qualidades pessoais de todos os seus componentes, desde os pais até o casal de filhos. Convivia com eles, a avó materna.

O genitor, Sr. Hélio, extremamente simples, mas com excelente prática na gerência de uma das alas da maior indústria da cidade. Aperfeiçoara-se mediante cursos técnicos e mantinha-se atualizado em todas as chances de ampliar seus conhecimentos.

Professora dedicada, a esposa Dina que, inspirada em sua mãe, dona Leonor, quis seguir-lhe os passos e exemplos na vida profissional. Claro que com duas mestras em casa, Celeste e Xisto, 14 e 11 anos, eram alunos excelentes e modelo para os colegas.

Fica exposta assim a condição de uma família tradicional e comum na vida brasileira.

Para modificar e trazer preocupação a esse clima de tranquilidade, corria o mês de julho, quando, numa manhã, dona Leonor não apareceu para a refeição matinal. Dina ia sorver já o terceiro gole de café e parou. Mesmo o pão ficara sem manteiga. Deixou tudo e rumou para os aposentos da vovó.

Dona Leonor passou logo a dizer que não era nada. Apenas se sentira surpreendentemente cansada, sem ânimo de um maior esforço.

Evidentemente que a filha de imediato fê-la alimentar-se ao menos um pouco e levou-a ao médico da família. Feitos os exames e respondido aquele questionamento habitual do doutor, ele declarou que a sua cliente estava algo debilitada. Deveria, além dos medicamentos, submeter-se a uma dieta que viesse recompor suas forças.

Na volta e aí já na hora do almoço, eis que a família cumpria regular e sabiamente esse esforço da presença de todos às refeições, eles, quase que ao mesmo tempo, queriam saber da vovó e que dores ou que males a atormentavam. Faziam isso tão carinhosamente que, os netos, a avó no meio, acariciavam-na e quase não a deixavam comer sossegada. A mamãe sinalizou com os olhos e os dois entenderam.

O fato é que dona Leonor não apresentava sinais de recuperação e com isso, ao final de outubro, contraiu pneumonia. Pensou-se em internação. No final das contas, com o acompanhamento de uma enfermeira, houve possibilidade de se prosseguir no tratamento domiciliar e também a da retomada das aulas por parte da mamãe Dina.

Em termos de espiritualidade, embora de modo geral ninguém dali perdesse missa aos domingos, as mais dedicadas eram mesmo dona Leonor e a filha. Como se aproximava o mês de dezembro, esta se empenhou confiantemente em orações próprias e especiais, silenciosamente, sem que ninguém notasse. Não fez promessas, dada sua incondicional confiança em Deus, que a tudo rege e de tudo cuida. Aquela fórmula sensata de se saber pedir, sem condicionar nem impor. Essas particularidades entanto não as deixava transparecer a ninguém.

Dezembro.

Dina intensificou ainda mais suas preces e se conformara com a perspectiva de que sua mãe, desta vez, sequer iria compor a mesa da ceia de Natal. Dona Leonor, de fato, mal recuperada da pneumonia, evidenciava a dificuldade de vencer aquela verdadeira luta. Resignada, ela também consigo mesma, não proferia uma sílaba como queixa. Tanto quanto pudesse até disfarçava seu mal estar.

A uma semana do Natal, sem sair da cama, a perspicácia daquela bondosa setuagenária, lograra perceber que havia uma trama na casa, a de suspender a ceia. Protestou veementemente e disse que se o absurdo se concretizasse, aí sim ela poderia vir a piorar, pelo menos no estado de ânimo e de esperança. Ela convenceu os entes queridos.

Vinte e quatro de dezembro.

O Sr Hélio, dona Dina e os filhos Celeste e Xisto acabavam de retornar da missa das dezenove horas. A ceia, programada para as vinte e duas horas. Na chegada da missa todos felicitaram a vovó, sentada na cama, terço na mão. Participaram também um ou outro vizinho e alguns parentes. Mesmo assim, não se notava vozerio nem aquela expansão natural de fim de ano. Trocaram-se os abraços e afetos próprios da data. Vovó, antes de lhe deixarem o quarto, pedira-lhes que tirassem o travesseiro de encosto e acomodou-se deitada. A porta, como de costume, apenas encostada.

A mesa posta. De forma retangular, nas pontas os pais, nas laterais, Xisto e Celeste. Na lateral de Celeste, costumava se acomodar também a vovó.  Os demais convivas aos poucos se ajeitaram.

Os presentes foram trocados naquele momento. O da vovó, decidiu-se que seria entregue no dia seguinte, para não acordá-la.

Decorreu um silêncio, até um tanto prolongado.

O Sr. Hélio se persigna e convida a todos para uma oração e algumas considerações, hábito consagrado naquela casa em dia de tanta significação.

De repente o Sr. Hélio esboça um sorriso.

Ninguém riu junto. Pelo contrário, não viam motivo para aquilo. O ar inconfundível de que algo brilhara alegremente no coração do papai ficou óbvio demais.

- Papai, invocam os filhos em uníssono, o que aconteceu?

- Fale Hélio, acrescentou a mãe.

Ele balançou a cabeça mais para a frente, a indicar que olhassem no canto da sala.

Vovó, com o seu vestido de missa, bem penteada, caminhou na direção da mesa. E antes de que todos corressem a abraçá-la, fez questão de dizer:

- Não me perguntem nada. A verdade é que de repente tive vontade de me levantar e o fiz sozinha. Mais ainda, tomei meu banho sem nenhum apoio. E aqui estou!

Milagre ou não, dona Leonor curou-se por completo e recuperou seu estado e modos de vida como o fazia antes de julho daquele ano.

Na ponta da mesa, mamãe Dina quedou-se silenciosa e um tanto concentrada. Deixou escapar apenas um leve sorriso e antes que os demais o fizessem, sentou-se.

Como percebesse que todos os olhares de repente se concentravam nela, disse simplesmente:

- Não houve nada não. É felicidade. Só isso.

 

 

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