Conto de Natal (2015)

Chegara-se ao mês de junho, quase final dele e - quem não sabe? - a marcar o início daquela temporada em que dias e horas se atropelam. Por isso mesmo, em rodinhas de fofocas e da troca de novidades, nas esquinas e bancos da praça, vige um tipo de refrão quase unânime:

 "Nossa, daqui a pouco o lufa-lufa do fim de ano já começa a dar as caras".

Justamente debaixo de um clima desses, eis que a família Souza, é surpreendida pelo infortúnio. O pai, seu Souza, como era conhecido e benquisto, perdera o emprego. Carpinteiro e marceneiro a um só tempo e de mão cheia, habilidoso e admirado, viu o seu patrão quase ir ao pranto, para ter que lhe dara desditosa notícia.

Uma débâcle generalizada assolara aquela região, com uma fase aguda de crise; o desgoverno, desde os municípios e bem assim a federação como um todo, em meio a uma administração decadente e principalmente solapada por vergonhosa corrupção. Tudo viera à tona de repente, apesar de mal antigo e até então bem disfarçado.

O seu Souza e dona Zilda, os pais. Filhos, Carmelo com catorze e Ângelo vinte e um anos. Os dois, evidentemente, até por via de consequência, bem iniciados no mesmo labor do pai. Ângelo, aplicado ao extremo, classificara-se, além disso, em concurso público. Cuidava dos papéis para ingresso no funcionalismo federal, uma carreira promissora.

Ao jantar, refeição simples mas saborosa, como somente as mães, sem a modernidade com exigência de trabalho externo, sabiam fazer - e alimento quente sobretudo - os comensais nem ao menos se entreolhavam, pais e filhos, tamanha a desolação, sucumbidos ao grave problema de como sustentar a casa dali em diante.

Todos se alimentaram e, ainda sem palavras, contudo não desfizeram a mesa nem se ausentaram, como se algo os mantivesse pespegados ao assento.

Eis que o Ângelo rompe com aquela cena quase fúnebre.

- Pai, mãe, que cara é essa? Afinal não rezamos juntos todos os dias a esta hora? E sempre com alegria?

Revela ele, primeiro, que fora indicado para servir no extremo norte do país. Assomara-lhe porém um outro programa, nesses dias de infortúnio. Resolveu então se explicar uma vez que todos ainda permaneciam à mesa.

Informa então, decidido, que não tomaria posse no emprego e assim congelaria sua nomeação para um futuro mais distante.

Dona Zilda pôs-se de pé. Branqueara-lhe de vez a face.

Antes, contudo, que ela dissesse palavra, o marido repousou delicadamente sua mão calosa sobre a da esposa, um sinal para ela se aquietar.

- Oi, gente, o mundo não acabou, advertiu o progenitor.

Na sequência de um silêncio alongado, Ângelo retoma a revelação que começara expor, na verdade, os detalhes de um plano arquitetado na noite anterior, de uma insônia preocupante: repousados na experiência e perfeccionismo do pai, sim, os três abririam uma carpintaria na cidade.

O pai obtemperou de pronto, que se o próprio ex-patrão não andava bem e programara fechar as portas em breve, eles então, fazerem-se concorrentes do bom amigo, ah, isso nunca. Jamais.

- Não pai, o sr. não entendeu. Nós vamos lá, os três, para assim impedir o anunciado fechamento da firma.

- Ah, filho, isso é um sonho. Perdoe.

- Sim pai, um sonho. E não é de sonho que se vive?

Engendrado o plano em todos os seus pormenores, para lá se dirigiram pai e filhos, não sem a envoltura de alguma timidez e acanhamento, a fim de pormenorizar a proposta ao ex-patrão do sr. Souza.

Foram cordialmente recebidos. Toda a família do visitado eram ele e a consorte.

Até com isso se alegrara o comerciante, por confirmar vez mais essa união exemplar da família do sr. Souza, de pais e filhos unidos,  um sonho que debalde marido e mulher perseguiram, eis que não tinham prole.

-  Pois é, disse finalmente o pai. Consta que o sr. estaria propenso a fechar a carpintaria.

- Já fechei, caro amigo, fora ontem o seu último dia aberta ao público. Faço-o em tempo, para que no fim, além não perder os frutos todos de uma vida inteira, não venha soçobrar de vez com dívidas impagáveis e cerco do fisco. Estamos em julho e imagine que o Natal já vem aí!

Um longo silêncio se abateu na sala, todos a fitar os próprios pés. Faz pensar de que concentração e profundidade não se encheram aqueles poucos e silentes minutos, nas conjeturas de cada um.

Chega então o momento de o Ângelo, mentor dos planos, se manifestar, ainda mais detalhadamente. Filho de peixe, peixinho é, cogitou de si para consigo. Somente pensou e não falou para evitar mal-entendido e também para que, naquela hora, não viesse aparentar arrogância.

E, elegantemente, com a desenvoltura que o caracterizava, dizia ter sabido pelo pai da existência ainda de um estoque remanescente de matéria prima e máquinas, que aquele comerciante colocaria à venda.

De novo, um mutismo providencial, como se daquela declaração adviessem dúvidas, propostas de compra e que tais. O que seria?

Ângelo pigarreou. Recostou-se melhor. E, resolutamente, em tom bem audível, passou a explicar:

-  Se o casal concordasse, reuniriam-se todos, num empenho de revitalização das oficinas, pois muito havia refletido quanto a planos, medidas e providências, com possibilidades de recuperação.

Na despedida, não houve qualquer resposta nem sinais de algum esperançoso otimismo. Limitara-se o proprietário, vagamente, a agradecer.

Passados, porém, dois dias, o comerciante e senhora, eles é que vieram bater à porta do sr. Souza com o fim de revelar que até sentiam-se reanimados com a desenvoltura daquela família, em especial impressionados com o arrojo e determinação do Ângelo. Só não entendiam como adiar o moço o ingresso no funcionalismo, uma garantia real.

Ângelo aduziu incontinenti:

- Conquanto pareça um desatino, se ao assumir serviço público seja eu o único favorecido, aqui, diferentemente, meus pais e irmãos também o seriam. Assegura-se proveito a toda a família, sem se falar da continuidade de um  estabelecimento comercial, que tanto renome granjeara.

Tudo acertado, placa nova e vistosa na entrada, uniformizados os quatro, eis que por ora não haveria auxiliares, como também regularizadas as normas societárias, inclusive em face da menoridade do Carmelo. Sem empregados provisoriamente, já a economia com salários e encargos trabalhistas representaria relativa folga nesse particular. Inclusive serviços externos e de condução aos veículos caberiam a eles próprios.

Essa mudança radical, a partir de uma reabertura de portas inusitada, deixou admirados os amigos, povo,