Corpus Christi
A festa é antiga, de tradição medieval. Em Itu, como em outros velhos lugares do Brasil, se faz desde tempos imemoráveis a procissão, de presença obrigatória para os católicos. Em tempos em que Igreja e Estado eram unidos, tratava-se também de festa oficial, com a presença de todos os corpos do governo local, devidamente colocados no cortejo, entre sacerdotes, irmandades, bandas, coros e a massa popular (clero, nobreza e povo).
Os antigos diziam que as ruas eram enfeitadas com flores para a passagem do cortejo, a maior procissão da cidade, que fugia ao aspecto devocional, simplesmente, por ser obrigatória. Deixava a Igreja Matriz passando por diversas ruas do centro, inclusive a do Patrocínio. Até a década de 1960 as alunas internas saíam, uma das únicas vezes no ano, para participar, celebrar, espiar, paquerar e se livrar, por alguns minutos, da reclusão dos estudos.
Contrariando 2012, geralmente é dia ensolarado, mas frio, que a gente levantava cedo, para cerimônia e os enfeites das ruas. Tantas vezes ouvi em casa que a tradição dos tapetes de serragem colorida foram iniciados, aqui em Itu, por meus tios, em 1967, após estudarem como se dava a prática em Matão. Moravam na casa da Rua Floriano Peixoto, onde está o Museu da Música (a procissão passava por lá) e ali, ainda sobre paralelepípedos, fizeram tapete com a serragem tingida na Fábrica São Luiz, onde trabalhava um deles – Luizito (Luís Antonio de Francisco), que iniciou, com outros operários, o tapete em frente à igreja do Bom Jesus, ainda hoje mantido por antigos funcionários. Com a mudança do trajeto, então assumiram o compromisso de confeccionar os tapetes em uma das laterais do Largo do Bom Jesus, onde está a casa de uma das minhas tias.
Lembro-me, na infância, de uma longa preparação para o trabalho: primeiro decidiam um tema a ser tratado, baseando-se em santinhos eucarísticos. Essa parte cabia à tia Helena (para nós Julieta), a artista da turma. Geralmente montava um quadro no meio do quarteirão, e esse era seu papel principal. Foram uns quinze anos de atividade; nesse tempo os temas foram anjos em adoração, com penas de verdade, cálice e hóstia, ornamentação geralmente feita de papel colorido e isopor, vidro colorido moído, material montado em casa e levado com todo o cuidado (essa era a parte mais divertida, o transporte cuidadoso!!!) para a rua. Ficou na história o tapete de 1980, no qual o papa João Paulo foi retratado, em meio corpo, no centro do mapa do Brasil, verde e amarelo. Era o ano de sua primeira visita. O rosto foi feito de massa, uma perfeição, quando montado.
A parte do tapete, do restante do quarteirão, era planejada pelos outros tios, que depois trabalhavam com os primos e vizinhos na confecção do tapete. Os moldes eram feitos pelo Luizito, de eucatex e serviam para diversos anos, invertendo o recheio e as cores. Ficaram guardados na igreja do Bom Jesus por muitos anos. O primeiro momento da ornamentação era riscar toda a rua com os moldes. Acontecia pelas 5h. Depois da missa das 6h., então voltávamos para o trabalho de preencher os espaços com a serragem peneirada, para ficar lisa. O conjunto de moldes permitia desenhos geométricos, também previstos anteriormente, nas inúmeras e calorosas reuniões familiares para tratar do assunto. A pior parte era peneirar, coisa que fiz bastante, mas que a coluna foi exigindo que abandonasse. Era muito trabalhoso, mas o resultado era apreciadíssimo. Nicolino, o tio mais velho participava pouco, porém, artista popular conhecido, ficava com os louros, recebendo cumprimentos, sentado na praça!
A belíssima procissão, realizada na parte da tarde, trazia todos os padres da cidade. Em frente às igrejas do Carmo, Bom Jesus e Matriz havia bênção do Santíssimo. No Bom Jesus o harmônio era trazido para a porta, onde o coro cantava o tantum ergo, hino próprio em música escolhida já havia décadas. Logo após a passagem do cortejo havia operação de guerra para preservar os ornamentos, para não serem pisoteados pelos demais participantes da procissão. O mais entusiasmado na guarda dos enfeites era o Padre Sonsini, vizinho e, ainda menino, esmerado colecionador de fragmentos artísticos.
A atividade dos tapetes no Largo do Bom Jesus, ainda na década de 1980 foi assumida por Ayrton Volponi e os funcionários de sua serralheria, que ainda hoje enfeitam aquele canto da cidade.
Outros artífices também eram os Guido e Zito Navarro, na Floriano Peixoto, com belos tapetes, atividade ainda hoje conduzida por congregados marianos do Carmo.
Alguns anos também fizemos, no nosso pedaço da Floriano, uma bela ornamentação, com os moldes de papelão recortados em casa, com jogo de cores. Meu irmão organizava e a vizinhança toda participava.
Com o afastamento das famílias do centro, pela concentração maior de comércio, cada vez mais as comunidades católicas assumiram o trabalho, talvez sem aquela técnica dos tios, mas com extraordinária vontade de realizar, de participar, de praticar a sua criatividade, o que mantém viva a nossa cultura popular.
Reconhecimento especial ao Prof. Alcides Scalet, que há décadas leva adiante a preparação e organização de todo o trabalho de enfeite das ruas da cidade, que no dia de Corpus Christi fica mais bonita e mais cheia de fé.