Publicado: Sexta-feira, 1 de junho de 2007
Desapego: a dor da liberdade
Minha filha de 14 anos abriu um armário de seu quarto lotado de bonecas. Barbies, pollys, casinhas, roupas, sapatos e acessórios - sonho de toda menina - dormiam nas prateleiras e gavetas esquecidas. Olhou tudo aquilo juntando poeira há mais de ano e, num ímpeto de nostalgia e coragem, começou a separar peça por peça para doar às crianças. As amigas do meu filho, de 8 anos, deliraram. Saíram de casa com as mãos cheias e a boca ainda mais cheia de sorrisos. A sacola que vai para a creche está também lotada de sonhos a se realizar.
Eu não sabia de nada, ouvi a história depois. Em um de nossos almoços, ela me contou sobre essa aventura, seus dilemas, tristeza e questionamentos (Fico ou não fico com essa? Será que o meu avô ficaria triste de saber que eu dei essa boneca? Ai, essa não, eu adoro!). “Foi muito difícil?”, perguntei. “Sim, foi, muuuuuuuuuito difícil”, ela respondeu.
Falei pra ela o quanto eu me orgulhava desse gesto, pois sei que não é nada trivial deixar para trás um pedaço da nossa história. Não eram apenas as bonecas que estavam saindo da nossa casa. Junto com cada Barbie, ia também uma lembrança da menininha de cabelos cacheados, brincando horas a fio no silêncio da sua imaginação. Cada Polly tinha uma história para contar, de um tempo que foi ficando distante, na medida em que seus minúsculos sapatinhos foram sendo trocados por sapatos de moça, com salto alto e muito barulho.
Sem percebermos, o nosso corriqueiro almoço se transformou em um ritual de passagem, anunciando a chegada de uma nova primavera, repleta de botões em flor. E meu filho testemunhou essa conversa, com seus grandes olhos atentos e curiosos.
Falei sobre como é importante fechar os ciclos da vida com beleza, aceitando as mudanças e honrando cada idade do jeito que ela é. Pensei no quanto é fundamental aprender a nos despedir daquilo que já não nos serve mais, apesar do grande vazio que nos deixa inicialmente. Lembrei das múltiplas vezes em que me despedi de minhas bonecas, brinquedos, roupas, escolas, amizades, namoros, casamento, trabalhos, apartamento onde meus filhos nasceram, cidade onde nasci...Foram muitas as despedidas e apesar do apego - sempre presente - a alma chamava a coragem para ajudar.
Sim, minha filha, eu sei que não é fácil esvaziar as gavetas, entregar as bonecas, despedir-se de um tempo tão lindo. Mas que bom que você teve a sabedoria de perceber que tinha chegado o momento. Que bom que você teve coragem para agir. Que bom que você teve ousadia para desapegar. A dor do desapego é uma dor que todos conhecem, ela não precisa de explicação. Então, só posso me orgulhar da filha que tenho. Afinal, suas bonecas poderiam ainda ficar no armário por anos e anos, e você nem teria a oportunidade de viver essa dor.
Eu nada posso te prometer em relação ao vazio que ficou. Mas vejo o brilho dos seus olhos azuis e vislumbro o despertar da liberdade chegando. No fundo, eu sei que você também sabe: quando esvaziamos as gavetas, abrimos espaço para novas histórias...
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