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Publicado: Terça-feira, 28 de outubro de 2008

Ela Caiu

Ela Caiu
Havia de tudo naquele imenso pomar, na casa mais central da cidade de Itu, à época.
 
Final da primeira metade da década de quarenta.
 
Querem saber? Manga, jabuticaba, limão. Um pé de ameixa, a maior das árvores, nos fundos, com os galhos a pender sobre o muro dos vizinhos, residências da rua paralela, a dos Andradas; nunca se resistia à tentação de subir nele, muito alto, embora se soubesse diante mão que se repetiria mil vezes o medo de descer. Laranja azeda, própria para doces. E muitas, muitas goiabeiras. Guardada na retina a figura de mamãe, debruçada sobre os tachos, forno a lenha, a revolver o caldo grosso e avermelhado da mais saborosa das geléias.
 
Para os mais novos, só restaria o consolo de conhecer o majestoso sobradão da Barão do Itaim através de raras fotos. Faça-se porém uma idéia de com que carinho se recordam dele aqueles que o viram e, mais ainda, quem alguma vez o tivesse visitado nos seus interiores. Pois saiba-se que as últimas pessoas a habitarem aquele prédio inesquecível, foram os componentes de nossa família, seus moradores por alguns anos.
 
Na entrada, um saguão amplo e, de cada lado, dois cômodos espaçosos. Naquele do lado direito, papai instalou a gráfica que trouxera de Capivari. Ocupamos todo o térreo. No andar superior, mantidas as instalações, autêntico relicário de móveis finos, cortinas e pertences, dos proprietários. Apareciam de quando em vez.
 
Foram esses os anos áureos da infância, na Rua Barão do Itaim e adjacências. Quem tinha um quintal dessas dimensões pagava o preço de vê-lo sempre cheio de crianças. Aliás, quintais grandes eram por demais comuns nas casas mais antigas.
 
Mas um dia o sobradão foi ao solo. Resistiu o quanto pôde. Apesar de ser construção antiga, uma vez que o seu proprietário anterior, o próprio Barão, ali morou até 1908, dominava o quarteirão com imponência..
 
Vetusto, inteiro, sólido, à espera somente de um restauro para perpetuar sua presença no centro de Itu. Infelizmente, veio a ceder lugar a outro, belo e também de fina concepção arquitetônica - o Paço Municipal - no entanto, um erro de previsão. Serviu por pouco tempo. E meio século seria pouco? Para próprios públicos, sim. Um prédio tão suntuoso como o do Paço, porém de maiores dimensões, poderia ter sido erguido noutro local, preservado o anterior. A cidade estaria inquestionavelmente mais rica, sem ter-se perpetrado tão lastimável mutilação. De certo modo, o sobradão vencido, fez sua cobrança. Mostrou o erro dos imprevidentes. O novo prédio, no que respeita à finalidade de seu uso, resistiu menos. Ademais, íntegro estaria o sobradão até os dias atuais se o não tivessem demolido.
 
No entanto, embora poucos notassem, do pomar do sobradão sobrara uma única árvore. Aquela mangueira, quase escondida, entre a parede do fundo da Prefeitura e o portão lateral, na Travessa Monsenhor Monteiro. Curiosamente, no final dos anos sessenta, fôramos servidor municipal, auxiliar do saudoso Luís Colaneri, na Câmara. Do primeiro andar, pela janela, apanhávamos muitas mangas. As primícias, para a namorada. Ela disso nunca se esquece e sempre nos relembra.
Tantos anos depois, ao passar por ali, indefectivelmente, tínhamos sempre um olhar de afeto para com a querida mangueira. Uma espécie de saudação, sem que ninguém soubesse, que o coração fazia com reverência e saudade. Cada árvore do pomar tinha seus casos particulares. Sobre essa mangueira, um episódio em que meu sobrinho Carlos, nós da mesma idade, deixou-se ele prender pela cabeça, entalada entre o vértice que se abria logo acima do tronco. Claro que a árvore ainda era muito menor. Socorrido por adultos, ganhou de sobra as palmadas do pai.
 
Está aí, amigos. Eis que, há algum tempo, levamos um choque. Algo diferente no beco, na Monsenhor Monteiro, logradouro pequeno mas prazeroso, palco de tantas peraltices de um passado distante e que servia de campo para peladas diárias com bola de meia. Faltava algo. Como já tínhamos passado, demos um giro no quarteirão e voltamos para conferir.
 
Tinham posto abaixo a frondosa mangueira...
 
Saudosista, bobo talvez, ficamos sem reação. Não houve como reprimir o sentimento de profunda tristeza, um misto de desaponto e impotência.
 
Hão de dizer que era velha demais, imprestável, a oferecer risco e coisas iguais. Quando se quer por árvores por terra, fazem-no os homens, afinal, com e sem motivo. Mesmo o replantio, não devolve a vida por inteiro. Parece a mesma coisa só para quem não sabe que as árvores, além de vida, têm história e alma. A mangueira tinha. Quantas vezes conversamos. De quantos segredos não terá ela sido guardiã, de toda uma infância vivida à sua sombra. Quantas vezes não cruzamos os braços para esconder o rosto, os braços apoiados no seu tronco, para chorar às escondidas por causa de problemas infantis e motivo de zombaria dos grandes, que não sabem perceber as frustrações dos pequenos, importantíssimas pelo menos para estes. Quantas vezes ela se postou, paciente e acolhedora, como depositária silente de inocentes queixumes. Parece impossível; há, entretanto, quem passe em branco pela mais terna das quadras da vida. Se você não tem vontade de voltar a ser criança, fique certo, não viveu. O que quer que realize doravante não lhe recobra o que perdeu.
 
A mangueira caiu porque foi extirpada.
 
Desapareceu, com isso, a marca última de um sítio imorredouro.
Sinceramente, a partir de agora, pouco se nos dá venha o local a ser destinado a qualquer uso. Por força das circunstâncias e por necessidade, como já acontecia, continuaremos a adentrá-lo. Passa a ser agora, para nós, um local absolutamente neutro. Nenhum resquício há da história densa que povoara aquele ped
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