Inconstitucionalidade?
Estávamos caminhando na avenida Ipiranga, na altura da praça da Republica, meu grande e saudoso amigo Joel de Faria Braga e eu. Era um início de noite de outono, muito agradável. Tínhamos saído do prédio do CityBank, na famosa esquina da avenida Ipiranga e São João (em São Paulo), imortalizada por Caetano Veloso. O escritório da Price Waterhouse ficava ali e nós, os solteiros, impecavelmente vestidos chegamos em poucos passos à boate Oásis, local onde iam os ricos e famosos da época.
Aqueles com mais de 50 anos hoje, devem lembrar da boate, logo no início da 7 de Abril. Local famoso por muitas referências, sendo uma a do playboy Baby Pignatary que adentrou com uma possante moto e desceu as estreitas escadas para entrar na boate. Paramos na porta da Oásis, no nível da rua e pudemos ver que naquela noite aconteceria um show com uma cantora famosa. O Joel, da cidade de Casabranca, junto de Jacareí no Vale do Paraíba, um pouco menos caipira que eu (de Sorocaba) decidiu que deveríamos entrar para assistir o show.
Bons tempos aqueles, quando os jovens do interior, que faziam faculdade (nosso caso na USP) sempre eram bem quistos e conseguiam ótimos empregos. Naquela época, podíamos andar a vontade naquela metrópole (com jeito de província) de 1 milhão e meio de habitantes, mesmo pela praça da República e subir a rua Jaguaribe na direção da avenida Angélica. Pessoalmente tinha apenas uma arma, se lembrar no final esta estória eu conto por que e para que era esta arma, tempo da caixa de fósforos que ninguém metia o bico comigo.
Então, e sempre tem um então ou porém na vida da gente, o porteiro secamente nos avisou: -" aqui só entram casais e vocês estão desacompanhados". Foi então que o Joel falou bem alto para todos ouvissem: -" o que o senhor está fazendo é inconstitucional". E, começou a justificar, se estamos bem vestido e sóbrios temos o direito de entrar e assistir ao show, e portanto desejamos entrar e queremos uma mesa para nós (olha o caipira mais velho falando na presença do mais novo, o Lara de Sorocaba). O porteiro insistiu que só era permitido a entrada de casais e ainda acrescentou que não estava vendo nenhum casal ali. Éramos apenas dois homens desacompanhados querendo entrar na Oásis, o que definitivamente não era permitido.
O Joel sempre certo e sabedor dos direitos da pessoa, o que chamam de cidadania hoje, disse em alto e bom tom: -"se o senhor não permitir nossa entrada iremos chamar a polícia". Olha eu atrapalhado, pois tudo que envolvia polícia, me parecia assustador e eu não queria estar no meio. Preferia um péssimo acordo do que uma boa briga. O porteiro disse que não seria necessário chamar a polícia, e solicitou que aguardássemos que ele iria chamar o gerente do estabelecimento. O gerente da boate, também tentou argumentar, na esperança de que desistíssemos.
Foi em vão e por fim, o tal gerente, autorizou que entrássemos.
Dentro da boate queríamos saber onde seria nossa mesa, então o gerente disse: -"os senhores sabem que homens desacompanhados ficam no bar". Isso eu já tinha visto em filmes onde os personagens ficam sentados naqueles banquinhos altos, que até hoje chamo de equilibrista, chego a pensar que a origem da música da Elis Regina, veio daí. O barman nos atendeu com a maior delicadeza, colocando a nossa frente dois copos longos, para wisky e um baldinho de gelo. Perguntou apenas qual a marca que preferíamos, e optei pelo Grants, visto que não existia whisky nacional.
Impecavelmente éramos servidos, sempre que terminávamos uma dose o balcão do bar era limpo com um guardanapo imaculadamente branco e um café fresco era servido. Ficamos curiosos e fomos ver o local onde a cantora iria se apresentar, pois tinha uma cortina que não permitiria vermos nada. Ficamos preocupados em como iríamos ver o show. Neste momento ainda não sabíamos se iríamos 'ver' o show e quanto iríamos pagar para que a boate ficasse dentro da constitucionalidade. O gerente criou uma situação do tipo pagar para ver. Pensava, pagar quanto? Foi então que o barman explicou: -"quando começar o show os senhores vão até a brecha da cortina e assistem pela fresta, em pé". Foi aí que eu perguntei para descontrair o ambiente: - "em pé ou de pé"? Ninguém sorriu, nem sorriso amarelo ...
E, o ritual continuava, whisky em copo limpo, impecável 'grants' no copo, cumbuca de pipoca feita na hora e toda vez que terminava uma dose era servido café fresquinho. Na hora do show assistimos em pé e de pé, muito mal e voltamos a nos equilibrar até que as 4 da manhã, quando finalmente pedimos a conta. Qual não foi nossa surpresa quando verificamos que a conta correspondia a aproximadamente meio salário mensal de cada um. Pagamos com cheque do citybank, que era onde a Price depositava o salário dos funcionários. E, andando para tomar cada um seu ônibus e voltar para casa, concluímos prometendo que não iríamos nunca mais discutir se uma barreira criada como aquela seria ou não inconstitucional.
Esta era a forma de discutir cidadania naquele início de 1960. E nunca mais insistimos em entrar onde não éramos benquistos pelos 'donos' da casa. Fico pensando e rindo quando falamos de cidadania, nos tempos atuais, lembrando deste grande e querido amigo Joel de Faria Braga.