João Batista de Moraes (In Memoriam)
As “primeiras vezes” de um padre nunca são fáceis... São muitas e desafiantes emoções! As primeiras missas, as primeiras confissões e as primeiras unções aos enfermos... Tudo se reveste de sacralidade e pesa mais a responsabilidade. Estava nos insondáveis desígnios divinos que a primeira extrema-unção a ser ministrada por mim fosse no meu próprio padrinho, o senhor João Batista de Moraes, falecido na noite de ontem.
A esposa, dona Claudete, o chamava de “Nêgo”. Os conhecidos o tinham por “Seu Jão”. Os mais chegados, falavam do “João Cuitelo”. E o povo em geral, principalmente os que transitavam pela ituana Vila Nova, o conheciam como o “João do Bar”. Por décadas esteve à frente da lanchonete defronte ao antigo Hospital Chierighini. E a todos atendia com profissionalismo e dignidade. Do médico ao bebum, do desconhecido acompanhante de algum enfermo de outra cidade, passando pelos conhecidos do bairro, todos mereciam o seu respeito.
Foi muitas coisas, o Padim Jão. Foi sobretudo um batalhador, plantando com honestidade e trabalho as sementes da própria família. Abriu seu comércio, comprou seu terreno, ergueu com as próprias mãos a sua casa. Junto com a esposa, uma das mães que Deus me deu, ele gerou e criou os filhos com hombridade. Edson, Selma e João Cláudio: fez tudo o que pôde por eles. Conseguiu conhecer e conviver com três netos. Sua presença certamente foi um presente na vida de muitos dos que o conheceram.
Eu era criança de colo quando comecei a frequentar sua casa. Fomos vizinhos, no final da Rua Capitão Fleming. Claro que me apeguei à família. Virei um agregado, fui uma espécie de “quarto filho”, conforme o tempo passou. Foi com o Seu João a minha primeira experiência trabalhista, como aprendiz no “Cuitello’s Bar e Lanchonete”. Tinha apenas 12 anos de idade mas, no meio de uma tarefa e outra, aprendia muito mais do que o ser um mero balconista. Saía do Regentão, onde aprendia sobre muitas matérias, e ia para a lanchonete, onde aprendia sobre a escola da vida.
Usava jaleco, igual a ele. Penteava o meu cabelo, igual a ele. E eu ficava intimamente orgulhoso quando alguém perguntava: “João, esse aí é seu filho?”. Uma fase da minha vida que foi determinante para quem sou hoje. Seu João tinha muita experiência, muitas histórias, muita coisa importante a compartilhar. Foi para mim um outro pai. Dedicou-me estima, atenção, cuidado, enfim, aquele amor paterno que supera a simples diferença sanguínea.
Seu João ensinou-me muitas coisas, entre elas o valor de se fazer amizade com muita gente. Com ele aprendi: tanto o freguês que aparece para tomar um rabo-de-galo quanto o que pede um pingado (café-com-leite) merecem o mesmo tratamento: educação, atenção, conversa, etc. No mundo frio dos fast foods e das grandes redes de supermercado, não se sabe mais o que é isso. No “Cuitello’s Bar” éramos todos humanos e a interação, muito real. Ainda tenho até hoje, passadas quase três décadas, muitas lembranças e amizades valiosas daqueles tempos.
Não é que ele fizesse o tipo dócil ou amigão. Ah, não! Seu João não era bobo e nem passado para trás! A primeira impressão era a de um homem sério. E ai de quem com ele passasse dos limites da educação e do respeito: o cassetete estava sempre ali, embaixo do balcão. Prezava pelas coisas certas, era rígido. E fazia muito bem em o ser. Aprendemos a admirá-lo e a amá-lo assim mesmo. Foi para nós um exemplo a seguir, por sua conduta e jeito de ser.
Homem temente a Deus, ia nas missas aos domingos. E quantas vezes fui à missa com ele e sua família! Foi grande devoto de Nossa Senhora Aparecida, desde sempre. E nos dias 12 de outubro, ninguém nem precisava perguntar: ao meio-dia o Seu João estaria na frente da casa dele, soltando um monte de fogos de artifício em honra da Mãe de Deus! No “Cuitello´s Bar”, nesse dia e em todos os outros do ano, jamais se via indecência ou coisa do tipo: acima das prateleiras e garrafas, no centro da parede principal do estabelecimento, reinava a imagem da Rainha do Brasil, a Mãe Aparecida.
Edson, Selma, Claudinho e eu (de penetra), todos passamos pela “escola” do Seu João. Aprendemos a ser gente, a dar valor a Deus, à Família e ao trabalho. Ali, naquele comércio. Aprendemos a varrer chão e a limpar banheiro, a fazer lanche na chapa e a voltar o troco em balas, a ser amigos das pessoas e até mesmo a praticar a caridade. Um salgado pra um mendigo? Seu João dava. Um tanto de dinheiro que faltava pra um lanche? Seu João descontava. Uma ajuda a alguém de fora, desprevenido, que vindo ao hospital e precisava matar a fome? Seu João confiava. Grandes lições!
Compartilho com todos o dia em que descobri que Seu João realmente me amava como filho. Estava eu nos meus saudosos 14 anos. Interessado em acompanhar os mais velhos, atravessei madrugada adentro com o Edson e o amigo Odilon, que me ensinaram a jogar xadrez no curso mais intensivo de que se tem notícia. Foi uma noite inteira tomando Fanta sabor laranja e decorando as funções de peões, cavalos, torres, bispos, etc.
Quando os três percebemos, o sol vinha nascendo! Às seis da manhã corri para a minha casa, pois trabalharia a partir das nove! E assim o fiz. Cheguei pontualmente no “Cuitello’s Bar” para cumprir a minha obrigação. Assim que me viu, Seu João questionou: “O que ocê tá fazendo aqui?”. E eu disse: “Ué... Vim trabalhar...”. Respondeu-me: “Depois de ficar a noite inteira acordado com aqueles dois, naquele jogo todo? Vá já pra casa! Vá dormir! Segunda-feira ocê volta!”. E não teve discussão: o Seu João perdoou minha molecagem! É coisa que só um pai faz por um filho (o que foi a minha sorte!).
Não foi à toa que, com os meus 18 anos e ao ser tardiamente crismado, escolhi o Seu João para ser o meu padrinho. Claro que tinha o meu pai como bom exemplo. Mas eu também tinha muita admiração pelo João Cuitelo. Sabe aquele cara que você quer ser quando crescer? Poisé, ele estava na minha lista. Lembro-me de quando, muito sem jeito, fiz-lhe o convite. Lembro-me de quando aceitou. Lembro-me de quando, na Matriz da Candelária, o Padim João me levou até o bispo Dom Amaury Castanho e me apresentou dizendo-lhe o meu nome. Lembro-me que depois, na sua própria casa, o Padim Jão fez uma festa, um animado churrasco, porque se tornara o padrinho daquele moleque orelhudo e cabeludo que vivia por aí fazendo graça e andando numa berlineta desengonçada...
Depois de adulto é que pude perceber, graças a Deus, o tremendo carinho do Padim Jão para comigo. Toda a atenção e afeto, sempre uma frase curta e certeira a me animar e incentivar. Nos últimos anos, nos últimos encontros, aqueles abraços fortes e amorosos que eu mesmo não entendia direito como e por qual razão os merecia...
Semanas atrás, no início do mês de agosto, fui visita-lo no hospital, já enfrentando a enfermidade fatal. Encontrava-se enfraquecido, mas lúcido. Fui rezar com ele, dar-lhe o sacramento da Unção dos Enfermos. Conversamos pouco, mas percebi em seus olhos marejados um certo orgulho ao me ver ali, à sua frente, de batina. Deve ter pensado: “Que orgulho! Olha o que se tornou aquele menino!”. Foi esse o diálogo íntimo percebido naquele momento.
Três semanas depois, de volta ao mesmo hospital, encontrei-o já muito debilitado por causa da enfermidade. Ao lado da minha irmã de coração, a Selma Aparecida, rezamos juntos e dei-lhe a extrema-unção. Ambos percebemos que, na hora em que rezamos o Pai-Nosso, ele buscou a minha mão e fixou o olhar em mim por alguns segundos. Ele sabia, ah, sabia sim: que estávamos ali com ele e para ele; que o afilhado padre foi ajudá-lo nesse importante e delicado momento humano que é a passagem desta vida para a próxima.
Na hora não chorei. Nós, os padres, somos conscientes e contidos nesses momentos. Mas tenham certeza de que cada letra deste artigo foi ensopada em lágrimas, que é a minha forma de chorar os que partem antes de mim. Foram, sim, lágrimas de saudade. O Padim Jão é insubstituível! Mas foram, sobretudo, lágrimas de alegria, lágrimas de ação de graças: como Deus foi bondoso conosco, por permitir que tivéssemos alguém em nossas vidas igual ao João Cuitelo!
Agora, as lágrimas são apenas nossas. Os sofrimentos do Seu João acabaram e o próprio Deus enxuga, neste momento, qualquer lágrima dos olhos desse filho seu. Se o Padim chorar, será de alegria, por contemplar toda a glória contida no Paraíso e por finalmente reencontrar tantos que o precederam na eternidade.
Sim, estamos tristes, desolados e enlutados... Porém, consola-nos saber que o sofrimento acabou e que a morte foi vencida. O senhor João Batista de Moraes não morreu, apenas começou uma outra vida! Ele não desapareceu, mas apareceu para a eternidade! Nós não o perdemos, nós o ganhamos! Ganhamos mais um no céu, a olhar e a interceder por nós! Ele agora está na alegria de contemplar o próprio Deus, de abraçar o Cristo, de receber os carinhos da Mãe Aparecida a quem dedicou tanta devoção! Ele está agora abraçando o saudoso Mano Véio, o Edson, seu primogênito, que viu partir e que agora outra revê.
Entre nós, que temos a verdadeira Fé, nunca fale mais alto a mensagem da morte, da perda e da desolação. O Cristo em que cremos traz a Ressurreição! Prevaleça, acima de tudo, a mensagem da Vida, que é o próprio Jesus! Foi ele quem disse: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue, ainda que morra, viverá!”. Ficamos com a nossa fé e a nossa esperança nessa verdade! Possamos todos encontrar refúgio em Deus quando chegar a nossa hora de mudar desta vida para a vida verdadeira, a eterna e definitiva!
Enquanto isso, como lidamos?
Lidamos com o que eu sempre digo:
“Ninguém morre de verdade enquanto permanece vivo nas nossas boas lembranças, nos nossos sentimentos e nas nossas orações”.
E que assim seja!
Amém.