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Publicado: Quinta-feira, 29 de agosto de 2019

João Batista de Moraes (In Memoriam)

Crédito: Arquivo Pessoal / Facebook João Batista de Moraes (In Memoriam)
Sabe aquele cara que você quer ser quando crescer? Poisé, ele estava na minha lista.

As “primeiras vezes” de um padre nunca são fáceis... São muitas e desafiantes emoções! As primeiras missas, as primeiras confissões e as primeiras unções aos enfermos... Tudo se reveste de sacralidade e pesa mais a responsabilidade. Estava nos insondáveis desígnios divinos que a primeira extrema-unção a ser ministrada por mim fosse no meu próprio padrinho, o senhor João Batista de Moraes, falecido na noite de ontem.

A esposa, dona Claudete, o chamava de “Nêgo”. Os conhecidos o tinham por “Seu Jão”. Os mais chegados, falavam do “João Cuitelo”. E o povo em geral, principalmente os que transitavam pela ituana Vila Nova, o conheciam como o “João do Bar”. Por décadas esteve à frente da lanchonete defronte ao antigo Hospital Chierighini. E a todos atendia com profissionalismo e dignidade. Do médico ao bebum, do desconhecido acompanhante de algum enfermo de outra cidade, passando pelos conhecidos do bairro, todos mereciam o seu respeito.

Foi muitas coisas, o Padim Jão. Foi sobretudo um batalhador, plantando com honestidade e trabalho as sementes da própria família. Abriu seu comércio, comprou seu terreno, ergueu com as próprias mãos a sua casa. Junto com a esposa, uma das mães que Deus me deu, ele gerou e criou os filhos com hombridade. Edson, Selma e João Cláudio: fez tudo o que pôde por eles. Conseguiu conhecer e conviver com três netos. Sua presença certamente foi um presente na vida de muitos dos que o conheceram.

Eu era criança de colo quando comecei a frequentar sua casa. Fomos vizinhos, no final da Rua Capitão Fleming. Claro que me apeguei à família. Virei um agregado, fui uma espécie de “quarto filho”, conforme o tempo passou. Foi com o Seu João a minha primeira experiência trabalhista, como aprendiz no “Cuitello’s Bar e Lanchonete”. Tinha apenas 12 anos de idade mas, no meio de uma tarefa e outra, aprendia muito mais do que o ser um mero balconista. Saía do Regentão, onde aprendia sobre muitas matérias, e ia para a lanchonete, onde aprendia sobre a escola da vida.

Usava jaleco, igual a ele. Penteava o meu cabelo, igual a ele. E eu ficava intimamente orgulhoso quando alguém perguntava: “João, esse aí é seu filho?”. Uma fase da minha vida que foi determinante para quem sou hoje. Seu João tinha muita experiência, muitas histórias, muita coisa importante a compartilhar. Foi para mim um outro pai. Dedicou-me estima, atenção, cuidado, enfim, aquele amor paterno que supera a simples diferença sanguínea.

Seu João ensinou-me muitas coisas, entre elas o valor de se fazer amizade com muita gente. Com ele aprendi: tanto o freguês que aparece para tomar um rabo-de-galo quanto o que pede um pingado (café-com-leite) merecem o mesmo tratamento: educação, atenção, conversa, etc. No mundo frio dos fast foods e das grandes redes de supermercado, não se sabe mais o que é isso. No “Cuitello’s Bar” éramos todos humanos e a interação, muito real. Ainda tenho até hoje, passadas quase três décadas, muitas lembranças e amizades valiosas daqueles tempos.

Não é que ele fizesse o tipo dócil ou amigão. Ah, não! Seu João não era bobo e nem passado para trás! A primeira impressão era a de um homem sério. E ai de quem com ele passasse dos limites da educação e do respeito: o cassetete estava sempre ali, embaixo do balcão. Prezava pelas coisas certas, era rígido. E fazia muito bem em o ser. Aprendemos a admirá-lo e a amá-lo assim mesmo. Foi para nós um exemplo a seguir, por sua conduta e jeito de ser.

Homem temente a Deus, ia nas missas aos domingos. E quantas vezes fui à missa com ele e sua família! Foi grande devoto de Nossa Senhora Aparecida, desde sempre. E nos dias 12 de outubro, ninguém nem precisava perguntar: ao meio-dia o Seu João estaria na frente da casa dele, soltando um monte de fogos de artifício em honra da Mãe de Deus! No “Cuitello´s Bar”, nesse dia e em todos os outros do ano, jamais se via indecência ou coisa do tipo: acima das prateleiras e garrafas, no centro da parede principal do estabelecimento, reinava a imagem da Rainha do Brasil, a Mãe Aparecida.

Edson, Selma, Claudinho e eu (de penetra), todos passamos pela “escola” do Seu João. Aprendemos a ser gente, a dar valor a Deus, à Família e ao trabalho. Ali, naquele comércio. Aprendemos a varrer chão e a limpar banheiro, a fazer lanche na chapa e a voltar o troco em balas, a ser amigos das pessoas e até mesmo a praticar a caridade. Um salgado pra um mendigo? Seu João dava. Um tanto de dinheiro que faltava pra um lanche? Seu João descontava. Uma ajuda a alguém de fora, desprevenido, que vindo ao hospital e precisava matar a fome? Seu João confiava. Grandes lições!

Compartilho com todos o dia em que descobri que Seu João realmente me amava como filho. Estava eu nos meus saudosos 14 anos. Interessado em acompanhar os mais velhos, atravessei madrugada adentro com o Edson e o amigo Odilon, que me ensinaram a jogar xadrez no curso mais intensivo de que se tem notícia. Foi uma noite inteira tomando Fanta sabor laranja e decorando as funções de peões, cavalos, torres, bispos, etc.

Quando os três percebemos, o sol vinha nascendo! Às seis da manhã corri para a minha casa, pois trabalharia a partir das nove! E assim o fiz. Cheguei pontualmente no “Cuitello’s Bar” para cumprir a minha obrigação. Assim que me viu, Seu João questionou: “O que ocê tá fazendo aqui?”. E eu disse: “Ué... Vim trabalhar...”. Respondeu-me: “Depois de ficar a noite inteira acordado com aqueles dois, naquele jogo todo? Vá já pra casa! Vá dormir! Segunda-feira ocê volta!”. E não teve discussão: o Seu João perdoou minha molecagem! É coisa que só um pai faz por um filho (o que foi a minha sorte!).

Não foi à toa que, com os meus 18 anos e ao ser tardiamente crismado, escolhi o Seu João para ser o meu padrinho. Claro que tinha o meu pai como bom exemplo. Mas eu também tinha muita admiração pelo João Cuitelo. Sabe aquele cara que você quer ser quando crescer? Poisé, ele estava na minha lista. Lembro-me de quando, muito sem jeito, fiz-lhe o convite. Lembro-me de quando aceitou. Lembro-me de quando, na Matriz da Candelária, o Padim João me levou até o bispo Dom Amaury Castanho e me apresentou dizendo-lhe o meu nome. Lembro-me que depois, na sua própria casa, o Padim Jão fez uma festa, um animado churrasco, porque se tornara o padrinho daquele moleque orelhudo e cabeludo que vivia por aí fazendo graça e andando numa berlineta desengonçada...

Depois de adulto é que pude perceber, graças a Deus, o tremendo carinho do Padim Jão para comigo. Toda a atenção e afeto, sempre uma frase curta e certeira a me animar e incentivar. Nos últimos anos, nos últimos encontros, aqueles abraços fortes e amorosos que eu mesmo não entendia direito como e por qual razão os merecia...

Semanas atrás, no início do mês de agosto, fui visita-lo no hospital, já enfrentando a enfermidade fatal. Encontrava-se enfraquecido, mas lúcido. Fui rezar com ele, dar-lhe o sacramento da Unção dos Enfermos. Conversamos pouco, mas percebi em seus olhos marejados um certo orgulho ao me ver ali, à sua frente, de batina. Deve ter pensado: “Que orgulho! Olha o que se tornou aquele menino!”. Foi esse o diálogo íntimo percebido naquele momento.

Três semanas depois, de volta ao mesmo hospital, encontrei-o já muito debilitado por causa da enfermidade. Ao lado da minha irmã de coração, a Selma Aparecida, rezamos juntos e dei-lhe a extrema-unção. Ambos percebemos que, na hora em que rezamos o Pai-Nosso, ele buscou a minha mão e fixou o olhar em mim por alguns segundos. Ele sabia, ah, sabia sim: que estávamos ali com ele e para ele; que o afilhado padre foi ajudá-lo nesse importante e delicado momento humano que é a passagem desta vida para a próxima.

Na hora não chorei. Nós, os padres, somos conscientes e contidos nesses momentos. Mas tenham certeza de que cada letra deste artigo foi ensopada em lágrimas, que é a minha forma de chorar os que partem antes de mim. Foram, sim, lágrimas de saudade. O Padim Jão é insubstituível! Mas foram, sobretudo, lágrimas de alegria, lágrimas de ação de graças: como Deus foi bondoso conosco, por permitir que tivéssemos alguém em nossas vidas igual ao João Cuitelo!

Agora, as lágrimas são apenas nossas. Os sofrimentos do Seu João acabaram e o próprio Deus enxuga, neste momento, qualquer lágrima dos olhos desse filho seu. Se o Padim chorar, será de alegria, por contemplar toda a glória contida no Paraíso e por finalmente reencontrar tantos que o precederam na eternidade.

Sim, estamos tristes, desolados e enlutados... Porém, consola-nos saber que o sofrimento acabou e que a morte foi vencida. O senhor João Batista de Moraes não morreu, apenas começou uma outra vida! Ele não desapareceu, mas apareceu para a eternidade! Nós não o perdemos, nós o ganhamos! Ganhamos mais um no céu, a olhar e a interceder por nós! Ele agora está na alegria de contemplar o próprio Deus, de abraçar o Cristo, de receber os carinhos da Mãe Aparecida a quem dedicou tanta devoção! Ele está agora abraçando o saudoso Mano Véio, o Edson, seu primogênito, que viu partir e que agora outra revê.

Entre nós, que temos a verdadeira Fé, nunca fale mais alto a mensagem da morte, da perda e da desolação. O Cristo em que cremos traz a Ressurreição! Prevaleça, acima de tudo, a mensagem da Vida, que é o próprio Jesus! Foi ele quem disse: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue, ainda que morra, viverá!”. Ficamos com a nossa fé e a nossa esperança nessa verdade! Possamos todos encontrar refúgio em Deus quando chegar a nossa hora de mudar desta vida para a vida verdadeira, a eterna e definitiva!

Enquanto isso, como lidamos?

Lidamos com o que eu sempre digo:

“Ninguém morre de verdade enquanto permanece vivo nas nossas boas lembranças, nos nossos sentimentos e nas nossas orações”.

E que assim seja!

Amém.

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