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Publicado: Sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

João Sem Medo

João Sem Medo
João Saldanha, nos anos '70
Sabe quando você se arrepende de não ter nascido alguns anos antes, para ver certas coisas que não mais existem? Às vezes sou tomado por tal sensação. Queria ter nascido para ver a inauguração da Torre Eiffel ou do Cristo Redentor. Para ver Garrincha jogando no Botafogo, o homem chegando à Lua e a Copa do Mundo de Futebol de 1970.
 
Queria ter nascido anos atrás, para ter conhecido pessoas que partiram antes mesmo que eu fosse gente. Para ficar maravilhado com as novidades tecnológicas e comportamentais que afloraram a partir dos anos de 1950. Para ler, e quem sabe até escrever, nos jornais de décadas passadas, sobre fatos que hoje encontro já definidas em enciclopédias e livros de história.
 
Definitivamente, eu gostaria de ter conhecido João Alves Jobin Saldanha. Ou o João Sem Medo, alcunha pela qual ficou conhecido em todo o território nacional. Nascido na cidade gaúcha de Alegrete, em 1917, cresceu vendo seu pai e a família envolvidos nas disputas políticas entre maragatos e chimangos, lá pelas regiões dos pampas. Adquiriu um espírito teimoso e guerreiro logo na juventude, que se tornaria traço indisfarçável de sua personalidade.
 
Passando a residir no Rio de Janeiro (RJ) na juventude, ficou conhecido como galanteador e jogador de futebol, bem como pela boemia nos bares cariocas. Acabou apaixonado pelo Botafogo de Futebol e Regatas, time dos mais tradicionais no Brasil, alvinegro conhecido como "estrela solitária", devido ao escudo estampado na camisa.
 
A juventude também o apresentou ao comunismo, fazendo com que se transformasse em um dos mais ativos membros do Partido Comunista, dentro e fora do país. Por causa dessa escolha viveu na clandestinidade, foi preso, fichado, espancado, perseguido e vigiado por anos a fio. Chegou a pegar em armas na tentativa de luta camponesa no interior paranaense e foi o grande organizador da greve dos 300 mil, na capital paulista, em março de 1953.
 
Nunca deixou a militância política de lado, tampouco as namoradas. Mas foi pela paixão ao futebol que acabou sendo escolhido para treinar o time do Botafogo na década de 1950. A intenção era ficar interino, até a escolha de um novo técnico. Mas entendia tanto do "ludopédico" que acabou ficando e sendo campeão com o alvinegro carioca.
 
Seu jeito polêmico de ser e a fama de bom treinador o levaram a comandar a desprestigiada Seleção Brasileira, em 1969. O futebol canarinho estava cabisbaixo, depois do vexame na Copa da Inglaterra, em 1966. Pois Saldanha revolucionou. Orientou suas "feras" e devolveu a auto-estima ao time e torcedores, classificando o selecionado brasileiro em primeiro lugar nas eliminatórias daquele ano.
 
Questões políticas o tiraram do comando da Seleção meses antes da Copa do México, no ano seguinte. O Brasil vivia sob a ditadura do general Médici. Criou-se uma polêmica, pois se dizia que o presidente queria o jogador Dario escalado para a Copa de 1970. E Saldanha teria polemizado mais ainda, dizendo: "O presidente escolhe o ministério dele. O meu time escolho eu". Além disso, ninguém tinha dúvidas de que Saldanha e suas feras levariam o caneco na terra dos astecas. Não ficaria bem, para uma ditadura militar, repartir os méritos da vitória com um comunista histórico.
 
Demitido do cargo, João Sem Medo passou a atuar na mídia. Principalmente no rádio e na televisão, onde foi comentarista esportivo sob a alcunha de "o técnico verdadeiramente técnico". Sua forma descomplicada de falar agradou ao público. Nos anos de 1980, em uma transmissão de jogo entre Brasil 4 x 2 Iugoslávia, deram-lhe 30 segundos para comentar a vitória brasileira. Ele não se intimidou e disse: "Meus amigos... O Brasil ganhou porque Zico se chama Zico... Se chamasse Zicovic, teria ganhado a Iugoslávia". Genial!
 
Não era um santo, definitivamente. Tinha sangue quente e sabia não só entrar em brigas como sair delas. No livro "João Saldanha: Uma Vida em Jogo", de André Iki Siqueira (Companhia Editora Nacional), podemos ter um relato bem completo de todos os traços de personalidade do biografado. Dizem que biografias não devem ser definitivas, mas esta chega muito perto. Dizem também que biografias "canonizam" os biografados, ressaltando seus aspectos positivos e ocultando os negativos. Pois a obra acima citada é bastante fiel, não omitindo nada dos leitores.
 
João Saldanha faleceu em 12 de julho de 1990, quando estava em Roma participando das transmissões da Copa da Itália. Foi de teimoso para a Europa, já certo de que não voltaria vivo ao Brasil devido às doenças pulmonares das quais sempre foi vítima. Mas foi sem medo e com vontade, como nos tempos em que jogava bola. Morreu fazendo o que mais gostava: imerso no ambiente futebolístico.
 
Certamente é muita pretensão e até uma contra-homenagem, encerrar a vida de uma pessoa em apenas um artigo. Espero ter plantado a curiosidade nos leitores que gostam de recordar ou conhecer o passado e seus personagens. Para terminar, fica de brinde uma de suas frases mais hilárias e inteligentes, coisa de bom observador e especialista no assunto: "Se concentração ganhasse jogo, o time da penitenciária não perdia um".
 
Amém.
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