Largas à imaginação
A mais corriqueira das ações, a da renovação da carteira de motorista.
O cidadão, de posse do aviso postal do DETRAN, até se assusta porque o tempo passa tão rapidamente.
Isso, haja atenção, que é bem assim; a vida segue, disfarçadamente pressurosa e, quando a gente se dá conta, vê que o dia a dia se esvai mais depressa. Quietinho, mas avança. Sempre.
No entremeio do corre-corre, vive-se também a sensação um tanto esquisita porque imperativa, justamente a obrigação civil de manter-se motorista de pleno direito e para isso sujeitar-se às exigências todas.
O fato influi no eu de cada um, como se estivesse bem e sossegado e, repentinamente, precisa mesmo submeter-se a que terceiros digam como o indivíduo se encontra, em vários aspectos, o da saúde em especial.
Por isso, o cliente, num ar tímido e de expectativa, senta-se à frente do profissional. A circunstância de cômoda passa a preocupante, se no contato de abertura não tenha havido resposta à saudação de quem humildemente iria precisar daqueles préstimos. Pior quando o outro levanta a cabeça bem depois, preso que pode se achar a alheio.
Parece ter vindo de longe, absorvido antes por cuidados outros.
Se alguma timidez envolve o cliente, agora então, recosta-se mais fundamente na cadeira, num ar extremamente desconfortável.
Até aí então fica descrita uma possível cena de abertura de um evento assim.
Se a expressão facial do cliente pudesse transmitir algum recado, ele poderia ser tomado nos moldes daquele clássico: "ataque que eu me defendo".
E daí em diante deve ocorrer a série rápida de perpassar os diversos momentos que todos sabem, para aferição da capacidade ou não da pessoa. Como tudo pode ir muito às pressas, debaixo de um sufoco, o atendido poderia até solicitar:
- Seria possível me esperar um pouco. Deixe pensar.
A resposta, quem sabe, viria seca e pronta:
- É só dizer sim ou não. Se enxerga ou não enxerga..
Mesmo assim, um pouco refeito e com um mínimo de ânimo de também qualquer pessoa, como ser humano, poderia reagir, pedir de novo, quase a balbuciar para que a série seja repetida.
Nada feito, se porventura o profissional discordar.
Mais desanimador se, pelas aparências ali projetadas, haja indícios de cataratas. Por isso não autorize tal renovação e ainda recomende consulta a um oculista, além de verifica a hipótese de que pudesse estiver acometido de cataratas.
Abatido, o imaginário cliente até ensaiaria um "até logo", mas ao ver o médico já de cabeça baixa outra vez, com atenção presa em seus papéis, nem se despede.
Uma vez em casa, com ar de aluno reprovado na escola, um tanto a contragosto, cede-se ao inevitável e intransferível, aquilo de precisar ir ao médico. Como resultado, além da visão enfraquecida, podem ser confirmados indícios de cataratas, mas ainda sem necessidade propriamente da intervenção.
Para a retomada do processo de renovação da carteira, escolhe-se outro local e outro médico. E tudo enfim se resolve satisfatoriamente.
Uma passagem em suma que, vá lá, pode ocorrer de quando em vez.
Moral da história:
Loas ao profissional dessa ordem, pela aptidão de ter suspeitado da incidência, conquanto primária e leve, de cataratas. Também porque, numa dessas, de fato o cidadão perceberá que até seus óculos estejam deveras e de há muito ultrapassados.
Mas, ainda e também, de se lembrar que cabe, em qualquer circunstância, um mínimo de cortesia, atenção e respeito à clientela, tanto que, numa hipótese assemelhada a esta, em todos esses passos ocorre justa cobertura das consultas e de taxas ao erário.
Largas à imaginação.
Mas pode acontecer.
É a vida.
Até que o "the end" foi feliz.