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Publicado: Quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Meu Vício

Meu Vício
Boa tarde a todos os presentes.
 
Meu nome é Ana Cristina, estou limpa há muitos anos. Nunca pensei em suicídio, embora aceitar minha dependência, não tenha sido fácil. Trabalho em uma empresa que entende e respeita minha situação. Tenho, à minha disposição, uma psicóloga contrata por eles, que foi de grande ajuda nessa minha árdua batalha.
 
Sou uma mulher de classe média baixa, tenho marido, filhos, cachorro; moro numa casa bem bonitinha num bairro tranqüilo e até de boa vizinhança.
 
O meu problema começou na época em que estava grávida do meu caçula. Como já estava com idade avançada, fui obrigada a curtir minha gestação toda dentro de casa. Repouso absoluto, e tranqüilidade. Não podia limpar minha casa com tanto empenho como de costume; tinha que fazer tudo meio superficialmente, nada de limpezas pesadas.
 
Dessa forma me sobrava muito tempo ocioso, e foi nesse momento que me deixei levar pelo vício.
 
Começou de forma calma, em doses pequenas. Quando dei por mim estava completamente dominada. Recebia duas doses diárias, sem erro.
 
Comecei a deixar meus afazeres de lado. Não me alimentava adequadamente. Parei de ir ao médico. Não limpava mais a casa, não fazia comida, não lavava roupa. Meu marido aos poucos foi se distanciando de mim, depois de tanto tentar abrir meus olhos. Meu filho preferia ficar na casa da minha sogra. Os amigos se afastaram.
 
Não saía de casa pra nada. Muitas vezes nem atendia o portão se estava na hora da minha dose.
 
Minha família trouxe padre pra conversar comigo, pastor, freira, benzedeira, pai de santo, pajé, médium, macumbeira, nada deu jeito na situação. Eu estava consumida pelo vício.
 
Naquela época me parecia uma dependência inofensiva, quase infantil. Hoje não. Hoje tenho plena consciência de toda dor que eu causei, de todo mal a mim e principalmente a minha família.
 
E eu, absorvida pelo vício, nem cheguei a me dar conta da situação. E quando me dei, já era muito tarde. Estava sozinha, no fundo do poço. Foi à psicóloga do meu trabalho quem primeiro diagnosticou o problema. Ela tentou, por várias vezes, conversar comigo, ao telefone muitas vezes sem sucesso. Após falar longamente com meu marido e associar os picos de abstinência com os horários das doses, conseguiu traçar uma linha de tratamento para meu problema.
 
Foi dessa forma que encontrei essa maravilhosa instituição e estou aqui dando meu relato. Só depois de muita conversa, de muito choro, sou capaz de assumir aqui perante vocês, que sou viciada em horário eleitoral gratuito! Poucas coisas me divertiam tanto quanto o horário eleitoral. Sei que é coisa séria, só esqueceram de dizer isso aos candidatos.
 
A propaganda eleitoral me fazia dar tantas risadas, me fazia tão bem, que deveria até ser paga, assim como canal de TV por assinatura. Não sei se algum de vocês já assistiu ao programa inteiro. Não tinha o mesmo entusiasmo pelo horário político da cidade de São Paulo, gostava mesmo de assistir ao da nossa cidade, de reconhecer as pessoas - Ticão da Quitanda, Marvareida da Padaria, Astrogildo do Açougue, Seu Tonhão Eletricista da Vila Nova, Berço Frentista do último Posto da Marginal à direita. Gostava de escutar os erros de concordância e de ver os nomes dos candidatos. Sentia uma euforia incontrolável quando fechava os olhos e já pela voz reconhecia cada um deles.
 
Hoje, ainda em tratamento, enxergo de outra forma esse programa. Hoje nem o assisto mais. Não sou mais dependente. Se precisar desligar a TV e sair com minha família faço sem dor no coração, sem suar frio, sem ter as mãos geladas.
 
Meu marido, a cada quatro anos, redobra a atenção sobre mim com medo que eu caia de novo em tentação e abandone tudo pelo programa eleitoral. É montado um esquema de quartel, lá em casa, quando começam os programas. Cobre-se a TV, some-se com o rádio, avisa-se a vizinhança pra não facilitar comigo.
 
Hoje sou uma nova mulher. Recuperada. Se me pego no meio da noite com uma vontade incontrolável de ver o horário eleitoral, vou até o banheiro, bem quietinha, e pego, escondidinho, debaixo do cesto de roupa suja, um santinho do Gorfa do Bairro Prudente, dou uma rápida olhada e volto correndo pra cama junto do meu marido, porque, sabem como é, também sou filha de Deus e ninguém é de ferro!
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