Mos majorum
O título latino se refere às grandes coisas, ao extraordinário e significativo, aquilo que faz a sociedade ser melhor, mais nobre, aquilo que não é efêmero, sequer banal, um lastro social e cultural que atravessa gerações. Todo povo tem um conjunto de crenças e valores com dias especiais de celebração, que fortalecem a sua existência enquanto comunidade.
A Semana Santa, tradicionalmente em Itu celebrada com fervor e pompa, desde o século XVIII, faz parte de conjunto desses momentos significativos, que reúnem gente para ver e ouvir, de maneira respeitosa e atenta aos ritos de paixão, morte e ressurreição de Cristo. Muita gente se articula para manter vivos os denominares da fé, os instrumentos que materializam a crença: imagens, andores, altares, velas e alfaias, paramentos, livros próprios para o tempo, cenários, flores, folhagens se misturam à vontade, ao gosto de ser comunidade, participar e ver vivos esses mesmos elementos que seus pais e avós também viram; é o orgulho de pertencer a uma gente e fazer história.
Dentro desse arcabouço infinito de coisas está a música, elemento-chave da cultura, que o nosso povo quer sempre vivo e que aqui é tão rico. Valeria a pena registrar que tivemos, em Itu, o mais notável conjunto de compositores paulistas do século XIX. Nem mesmo em São Paulo se escreveu tanta música sacra como em Itu. Os Mariano da Costa- Lobo mantiveram certo monopólio da música ituana entre as décadas de 1850 e 1900, cujas composições estão vivas até hoje.
Quantas cidades conseguiram manter uma tradição musical por mais de 200 anos? Está aí o nosso Canto da Verônica, composto pelo Padre Jesuíno do Monte Carmelo (1764 – 1819), que perpassou gerações e permanece guardado na memória de tanta gente, ainda embalando a crença e fortalecendo a sociedade.
Ao longo das últimas décadas temos visto recomporem-se outras músicas importante e significativas do repertório próprio de Itu. A música é um patrimônio imaterial, cuja existência viva na sociedade depende da sua execução constante. A memória da composição fica guardada em partituras (documentos), o suporte desse patrimônio. Para voltar a existir na na comunidade a informação tem que ser escrita novamente, em linguagem atual (o que chamamos restauração) ensaiada e cantada/tocada, para a gente entrar em contato com ela.
Havemos de lembrar que é uma garantia constitucional o direito de conhecer o próprio patrimônio, sobretudo se a correspondência entre as diversas linguagens artísticas for levada adiante. Arquitetura, escultura, artes plásticas, literatura e música devem estar em diálogo, para a compreensão do conjunto cultural constituído em certo momento da História, em determinado lugar do planeta e conseguir relacioná-lo com o presente.
O Museu da Música – Itu preserva obras de todos os compositores locais. Destaque para obras sacras da semana santa.
Interrompido o ciclo do Sermão das Sete Palavras (iniciado em 1867) em 1992, de forma arbitrária, desde 1995 as músicas de Elias Lobo voltaram à vida em forma de concerto. Em 2006 voltou também a cerimônia graças ao clamor da comunidade. Neste ano o Coral Vozes de Itu cantará, pela primeira vez desde o século XIX, a obra integral de Elias Lobo (1867), ou seja, a primeira música do gênero, escrita no Brasil.
A Procissão de Passos, momento de ouvirmos os tradicionais motetes, compostos em 1890 por José Mariano, não teve interrupção, mas a música, alterada na década de 1920, foi restaurada. É como se fizéssemos a reconstituição de um imóvel e conseguíssemos encontrar a sua aparência original, o seu verdadeiro projeto. Fascinante!
Em 2003, outro passo importante foi dado com a restauração do Ofício de Trevas realizado na Igreja do Carmo. Desde então as Matinas de Quarta-feira Santa de Tristão Mariano foram abrigadas pela comunidade que, anualmente, lota o templo para ouvir os tradicionais responsórios em diálogo com o Canto Gregoriano.
Talvez 2012 seja o mais significativo momento no processo de amadurecimento das relações entre as comunidades religiosas e seu patrimônio musical. A Paróquia Nossa Senhora Candelária, para a qual todo esse repertório foi composto, abre espaço para a música própria da Adoração da Cruz, um conjunto de peças esquecidas logo após a morte de seu compositor, Tristão Mariano da Costa (1908). As obras já foram apresentadas em concertos e voltam agora para a cerimônia.
Aos preocupados com a compreensão da comunidade, já que o repertório é cantado em latim, é importante lembrar que todos os presentes poderão participar acompanhando através de folheto bilíngue, distribuído no início da cerimônia, como se faz com o Ofício de Trevas. Será bem mais fácil que ouvir música em inglês nas rádios ou na televisão, quando não temos qualquer tradução.
Outro momento importante será a execução inédita do conjunto integral dos hinos escritos para a Procissão do Enterro. Perdeu-se o costume de cantar todas as peças nas paradas do cortejo, ficando somente o cântico da Verônica do Padre Jesuíno. Por especial empenho do Museu da Música, um grupo de cantores do Coral Vozes de Itu irá executar os hinos próprios para antes e depois da Verônica, que o maestro Elias Lobo compôs em 1872. Essas obras, escritas há 140 anos, são inéditas em nosso tempo.
As novas atitudes de valorização do patrimônio musical só fortalecem os laços de pertencimento a esta terra, revestem a fé com belas melodias e trazem até nós o gosto de ouvir algo que nos remete a um lugar diferenciado da existência, uma experiência sensível entre o acreditar e o pertencer. É uma vivência da qual todos devem tomar parte, estudantes inclusive, para notar o quanto nós também somos significativos, independente do resto do mundo “civilizado” da internet.
O legado que estamos vivenciando é um momento especial, que se pode experimentar mesmo não pertencendo ao universo religioso. É um mergulho no universo das permanências culturais.
O tradicional ciclo da Páscoa é um dos mais vigorosos traços da memória viva de Itu e que nossa gente tem que lutar manter atuante. Esse é o futuro da sociedade e das instituições!