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Publicado: Domingo, 4 de setembro de 2011

O incrível caso do homem que comia livros

O incrível caso do homem que comia livros

Nasceu igual a todos os bebês: do ventre da mãe, após nove meses de gestação. Tinha então o peso ideal dos recém nascidos, os membros e órgãos em perfeito estado. Não havia razão alguma para preocupações em torno de sua saúde. Os parentes contentavam-se em procurar em seu rostinho as fisionomias do papai ou da mamãe.

A chegada em casa foi uma felicidade sem tamanho. O quartinho decorado o esperava, o bercinho aconchegante o acolheu, os bichinhos de pelúcia sorriam de satisfação. Ele dormia e acordava, ria e chorava, mamava e regurgitava. Um bebê igual a todos os bebês.

Tudo corria normalmente até seus quatro anos de idade, quando a mãe o flagrou com uma edição de “Madame Bovary” na boca. Tomou uma reprimenda daquelas: isso era coisa que se fizesse, oras bolas? Um livro empoeirado na parte de baixo da estante?

Foi crescendo e os pais percebiam a aversão do filho pelos presentes comuns. No aniversário ou Natal, desdenhava de roupas e até de brinquedos. Gostava mesmo era dos livros, fossem grandes ou pequenos. Nem o tipo de história parecia importar. Parecia ser seu objeto de fixação.

Na puberdade, passava horas trancado no quarto no banheiro. Tudo aparentemente normal, até que o pai o flagrou no chuveiro com um exemplar da Barsa. Bem que ele sentira falta do volume da letra jota! O genitor não entendeu absolutamente nada do que aquilo poderia significar. Deu-lhe bronca, mas sem nem saber a razão direito.

Aos 17 anos, enfim, o menino se revelou. Durante o jantar, todos à mesa, começou a estrebuchar a verdade. Igual a uma metralhadora de palavras, contou que não gosta de carrinhos ou de bonecas, de bolas de futebol ou de vôlei. O que adorava mesmo eram os livros! Livros de qualquer jeito! E pôs os pais pra pensar! Um livro lhe caindo n’alma era febre em sua alma, era um prazer a saciar!

Pai e mãe ficaram aliviados deveras. Chegaram a pensar em coisa muitíssimo pior. Se o filho gostava de livros, que bom! Seria um estudioso, um literato, um crânio! Até que o rapaz tirou um exemplar da “Divina Comédia” debaixo da mesa, picou-o na sopa e continuou a jantar.

A partir daquela revelação os pais passaram a vigiar os passos do moleque. Tinha um paladar refinado. De manhã gostava de José de Alencar, com café e iogurte. Um pouco antes do almoço dava uma beliscada num Marcos Sabino. No almoço seu cardápio predileto era Paulo Coelho, feijão e salada, um prato indigesto pra leitores de fraco estômago. Passava a tarde mastigando pedacinhos de Sheakspeare e no jantar gostava de clássicos na sopa ou no miojo. Antes de dormir, um Monteiro Lobato com um copo de leite para finalizar o dia.

O garoto ficou adulto, foi morar sozinho e os pais vieram a morrer. Tornou-se um solteirão por opção. Ficou cansado de tentar se entender com alguma mulher que compreendesse sua fome por Literatura. Já não escondia sua verdadeira paixão de ninguém. Era freqüente vê-lo nos restaurantes almoçando Machado de Assis ou nos bares tomando chope acompanhado de uma porção de Drummond.

Com o tempo, acabou adquirindo um vício por literatura de cordel. Não podia ver um daqueles livretos tradicionais do cordelismo. Começou a importá-los dos maiores centros cordelistas do país. Devorava vários por dia, sem contra indicações. O ritmo das rimas, a poesia das construções, o lirismo das histórias fantásticas causavam-lhe um êxtase sem comparação.

Num fim de semana, após consumir quase cincoenta livrinhos de cordel, resolveu jantar. Abriu uma garrafa de vinho e para acompanhar começou a degustar uma biografia de Winston Churchill, seguido imediatamente por um livro de auto ajuda. A mistura não lhe fez bem. Resolveu ingerir um almanaque de piadas, o que só piorou as coisas. Sua pressão caiu, começou a ficar branco e...

Foi encontrado três dias depois em seu apartamento, caído no chão. No auge de seu desespero, vendo a morte próxima e vislumbrando nunca mais poder saborear um livrinho sequer, ainda teve forças para abocanhar boa parte de um dicionário Houaiss tamanho grande, dos verbetes A ao M.

Seu velório foi triste, sem muitos parentes ou amigos. Mas todos os vendedores de livros da cidade compareceram. Conforme seu último desejo, foi sepultado em um caixão capa dura, tendo em seu interior um exemplar fresquinho de “Os Lusíadas”. E assim, por ironia do destino, escreveu sua última página no Livro da Vida. Livro este que não será devorado. Não pelo menos por ele.

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