O mar profundo
Outro dia, enquanto esperava minha vez num consultório médico, folheava uma revista científica. Li que noventa por cento do oceano, ou seja, quase todo ele, é considerado mar profundo, isto é: tem profundidade superior a duzentos metros. Breu. Nessa profundidade não existe luz do sol possível. A mais profunda cegueira. Em meio à vastidão do mar profundo ainda existem grandes fossas marítimas com mais de dez mil metros de profundidade. Quase me afoguei. Imagino que lá nesse fundão totalmente escuro deva existir uma vida pulsante, agitada, ensimesmada, esquecida do nosso mundo aqui de cima.
Durante as madrugadas – logo elas - quando criança, tinha que me levantar de minha cama quentinha e caminhar na fria escuridão do longo corredor até o banheiro para não urinar nas calças do pijama. Atravessar aquele corredor longo e escuro, de tábuas corridas, era como uma jornada num assombroso mar profundo. Ao longo desse percurso sado-masô, eu costumava fazer contagens regressivas mentais, ao final das quais coisas horripilantes aconteceriam caso não me encontrasse novamente em meu leito, na mesma posição em que o deixei. Eram prazeres de puro terror que o corredor escuro, uma pequena mostra do que possa ser o mar profundo, me causava.
Cresci e uma das poucas questões para as quais a passagem do tempo significou uma solução foi o medo do escuro. Hoje, o escuro transformou-se, de esconderijo de monstros, em promessa de redenção.
Explico: De onde venho? Para onde vou? Por que e para que estamos aqui? Qual o sentido da vida? O que é a morte? E todas essas questões para as quais a humanidade já queimou muita pestana e muito herege, são respondidas, de forma categórica, pelo pensamento racional/científico de um modo que me apavora. Dizem os cientistas, sem nenhum sinal de perturbação, que nós somos um acaso biológico. Somos um mero fenômeno bioquímico. Nascemos, vivemos e morremos. Não existe transcendência possível. Somos como um grão de areia que abrisse os olhos.
Nem mesmo nos longos corredores escuros de minha infância poderia supor pesadelo mais tenebroso. Vivo garimpando pistas que me devolvam as possibilidades roubadas por esse tipo de idéia horrorosa. Enquanto lia a tal reportagem sobre as fossas marítimas disse a mim mesmo: Ôpa, aqui tem uma possibilidade. Até me ajeitei na poltrona, aprumei a revista no colo e raciocinei bem cientificamente: Setenta e cinco por cento de nosso planeta é mar. Se noventa por cento destes setenta e cinco por cento de água são mar profundo, isso significa que sessenta e sete e meio por cento do planeta está submerso a mais de duzentos metros. Uma profundidade ainda inacessível ao ser humano e toda sua parafernália científica. Vivemos, portanto, num planeta que é sessenta e sete e meio por cento desconhecido. Não conhecemos, nem sequer podemos chegar a muito mais da metade do espaço onde vivemos. Em pleno século 21. Vastíssimas regiões intocadas, inatingíveis mesmo aos mais sofisticadas prodígios da ciência.
È como se morássemos numa casa e só conhecêssemos a cozinha, o lavabo e talvez a área de serviço, isso se ela não for muito grande. Se procuro algo que perdi dentro de casa, mas nunca fui à sala, aos quartos, à varanda – nem sei se tem varanda, afinal não conheço bem a casa – não posso dizer que essa coisa perdida não se encontra em minha casa. Posso no máximo reconhecer que não achei a tal coisa perdida – que aliás nem fui eu que perdi. Mas me parece no mínimo razoável admitir numa circunstância destas, que talvez um antigo morador, ou quem sabe o arquiteto que fez a casa possam saber onde está a tal coisa perdida.
Fechei a revista e olhando para o teto filosofei com meus botões:
Lá no escuro desconhecido do fundo do mar, lá no enorme e intocado mar profundo que é nosso planeta, onde não enxergamos ou conhecemos quase nada, sobrevive o mistério. Pletora de possibilidades (aprendi a usar a palavra pletora ouvindo uma música do Caetano Veloso) E continuei, estava realmente empolgado. Possibilidades é tudo aquilo que eu precisava para deixar de ser um grão de areia que abriu os olhos como a ciência diz que eu sou – ciência, aliás, que como acabei de provar cientificamente, conhece nosso planeta tanto quanto aquele morador que nunca saiu da cozinha e da área de serviço conhece sua casa. A essa altura eu já estava em êxtase e dei um discreto soquinho no ar - referência ao gesto do Pelé quando comemorava seus gols - e disse para mim mesmo: Mar profundo. Que alívio. Qualquer aceno, qualquer vestígio de sentido já me conforta.
Finalmente chamaram meu nome. O médico veio receber-me à porta.
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