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Publicado: Segunda-feira, 30 de janeiro de 2006

O novo ano e o vendedor de uvas

Era uma dessas tardes sem nada de especial; fim de um período anual, entre o Natal e o Novo Ano. A cidade já se colocava serena, um tanto tranqüila, no limiar das férias que vinham se aproximando. Sem destino pré-estabelecido, meus pensamentos circulavam calmamente entre um e outro tema desprovido de qualquer importância. Eu rodava aleatoriamente pelos bairros, sem compromissos, como se buscasse conhecer mais alguns detalhes de um lugar que já me é familiar desde menino.
No cruzamento, no alto, suspenso na atmosfera por frágeis liames, uma inabalável autoridade local decidiu pela mudança do fluxo dos carros, repetindo com exatidão seu único trabalho pelas contínuas vinte e quatro horas de plantão. De repente, o vermelho tomou o lugar do verde e minha trajetória foi momentaneamente interrompida pela sinalização do singular juiz. Obedeci-o, parando no sinal fechado, apesar do meu isolamento naquelas ruas igualmente solitárias.
Da calçada um velhinho me oferece uvas, que vende em um carrinho de mão. Faço-lhe um sinal afirmativo e ele, então, humildemente se aproxima do veículo. Não sei exatamente a razão; vontade tenho certeza que não era. Ao observar as frutas, meus olhos acabam por fixar-se nas mãos experientes que as traziam. Compadeço-me de suas mãos calejadas, de sua idade avançada, ainda na luta diária pelo pão. As vestimentas são simples e a alma é pura, típica das pessoas alheias aos avanços da sociedade e à felicidade dos tempos modernos. Seus olhos são humildes e sua jornada já se mostra bastante longa. Meu coração se aperta.
Compro as uvas, entrego-lhe o dinheiro, dou-lhe um sorriso terno e, com voz tranqüila, desejo-lhe um bonito e feliz Novo Ano. O sinal se torna verde novamente. Despeço-me do velho senhor e vou embora com minha impotência e uma incômoda pressão a me apertar o peito. Chego em casa, desembrulho as uvas e... Do jornal que as embala, tu me olhas fixamente. O tempo pára; fico imóvel por dentro. Tento buscar qualquer razão e, sem explicação racional para tal acontecimento, fico com... a poesia (inexplicável) da vida.
Depois de alguns instantes, o tempo voltou a fluir novamente. Inevitável que alguns arquivos da memória me fossem imediatamente acessados e, sem senhas a trancá-los, mais uma vez fossem abertos. Por algumas horas, refiz diversas sendas por difusos pensamentos. No trajeto, fui deletando o que não mais interessava e trançando somente as boas lembranças.A noite já tomara o lugar do dia e o céu estrelado era o convite à reflexão. Serenamente, pela janela do quarto, procurei no firmamento por minha companheira de travessia, minha estrela de brilho ímpar que sempre tem me acompanhado pelas horas tristes e pelos momentos de alegria. Dialogando com minha fiel parceira cósmica por alguns poucos minutos, num impulso, pensei em te escrever. Escrever para te dizer do meu profundo desejo de que a vida esteja te cuidando mais e melhor do que àquele velhinho. E que o tempo, que vejo nas marcas do teu e do meu rosto, também te mostre o caminho daquele lugar, dentro da tua alma, onde o mais puro do nosso ser permanece imaculado. É lá que somos Deus, não obstante, para se chegar a esse sereno destino, seja preciso passar por mágoas, raivas, mesquinharias, medos... Então, e só então, chegamos. Que o próximo ano te seja suave e que a ternura da tua alma sobreviva sempre.

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