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Publicado: Sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

O Voo da Anhuma

Crédito: Luciana Francisco O Voo da Anhuma

Eu nasci em Salto. E quando algum colega me chamava de "mandi" com o interesse de me ofender, recebia em troca meu sorriso e orgulho. Sempre gostei dessa ideia confortável de ter identidade e rótulo. Ser "mandi" era uma forma de covardia com licença social; era como pertencer à um grupo a quem você atribui as conquistas e derrotas de forma coletiva.

Desde os 14 anos frequentei Itu em busca de conhecimento técnico que a minha cidade ainda não podia entregar. E dessa primeira experiência, compartilhei o curso de mecânica de usinagem, no Senai, com garotos de toda a região. Em minha turma havia gente da "Terra Rasgada", da caçula "Indaiá" e os próprios ituanos. O que me dava pena era notar que eles não tinham algo que os orgulhasse genuinamente. Sorocaba já era considerada uma metrópole; Indaiatuba, a terra lúdica das bicicletas; e em Itu, seu povo começava a ter vergonha das "coisas grandes".

Mas meu orgulho, embora farto de significados, era vazio de informação. Eu não sabia quem raios era essa entidade "mandi" a qual me chamavam. A referência me parecia mais um código, que um personagem. Em minha cabeça infanto-juvenil, como havia corintianos e gaúchos, havia também os "mandis", o qual eu defendia com ímpeto.

A internet não era uma realidade plural na década de 90, então recorri a meu irmão, que rapidamente transformou aquilo em uma troça familiar, mas me entregou a informação: era um peixe. Minha desilusão foi imediata! O tempo todo eu me vangloriara de ser um peixe? Um reles peixe? Então fui buscar mais informação e aquele bravio nadador do rio Tietê, encontrado em abundância antes da poluição, ganhou o status que merecia em minha memória afetiva, principalmente por ser ainda uma das poucas espécies que lutam sobreviver no trecho morto desse rio.

Ontem, 18, fui ao lançamento do livro "O Voo da Anhuma", projeto-vida da admirável e doce Carolina Padreca, que aconteceu no incrível e polêmico Memorial do Rio Tietê, em Salto. Antes já havia assistido a peça, de mesmo nome, encenada no seio do Ponto de Cultura Dr Barros Junior, em uma noite memorável o qual foi possível reverenciar a entrega da autora naquilo em que escolhe se envolver. Ela estava descalça e regendo tudo com olhares; sua maneira peculiar que dispensa as mãos.

Conheci a Anhuma algum tempo antes, quando precisei escarafunchar a história regional para guiar grupos de turistas e surpreendê-los. Foi ave que ajudou a construir as primeiras referências nominais ao rio Tietê. Brincava com cada grupo que desembarcava comigo no Complexo Turístico da Cachoeira, reproduzindo reflexão de Mario Quintana: "Um gato não sabe que se chama gato". E continuava dizendo sobre nossa necessidade em nominar para se apropriar, por isso a variação de nomes antigos dados ao rio caudaloso que "corre pra cima" estar mais relacionado ao tempo do homem em seu diálogo com o rio. Agora, na era da informação democrática, acessível e massificada, que suprimiu o imaginário popular e registrou na forma da lei, o nome "Tietê", a própria anhuma acabou esquecida.

Quando reconheci em Elise, nome da protagonista, a mesma ave do qual falava para meus turistas, o deslumbramento foi muito maior. Ela é a personagem que decide conhecer a história de sua espécie e volta até o médio Tietê, de onde partira sua família há décadas atrás. Quando chega, sua decepção é imensa, por encontrar o lugar completamente poluído e inabitável.

Poeticamente, o livro será distribuído para a rede municipal de ensino básico de Salto a partir do ano que vem, como uma forma de levar as crianças de volta para suas raízes - Assim como fez Elise -, reconhecerem a anhuma e construírem mais uma arma na luta em favor da preservação ambiental.

O mandi ainda sobrevive no rio e foi encontrado entre outras espécies de peixe, no genocídio recente divulgado pela grande mídia. A anhuma havia ido embora, voltou agora, com o livro da Carol Padreca. Obrigado!

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