Os Mundos sob seus pés
Pois hoje eu estava recordando minha deliciosa experiência no Caminho da Santiago de Compostella. Lembrei de um momento muito singelo.
Seguíamos por uma velha estrada que ia cortando a montanha. A estrada era bem estreita e tinha o asfalto bem desgastado. A natureza ao redor dela era rica e muito verde, e durante todo o tempo, e estou falando de muitas horas, creio que não chegamos a ver três carros. Cruzamos um pueblo, uma pequena vila. Menos de dez casas, umas vaquinhas pastando e umas árvores de maças entre moitas de amoras. Um senhor meio reclinado passou caminhando sobre botinas surradas, com um sorriso desdentado, um colete de lã e uma boina marrom. Ao seu lado uma senhora com os típicos vestidos da Galícia rural, um lenço na cabeça e um cajado pra tocar suas vaquinhas. Tudo sobre uma botina igualmente surrada que deixava um centímetro de meia verde para fora. Escutei um barulho ao longe. Parecia um trovão. Uma vibração. Comecei a escutar várias vezes até que, de repente, um imenso quadrado de concreto apareceu no meio da vila.
A construção cinza e sólida entre as casas de pedra, cercadas com madeira era, definitivamente, estranha. Algo me lembrou as cenas de filmes, quando uma nave espacial chega no meio de uma fazenda, sob o olhar estranho de algum camponês com seu cachorro e suas galinhas. Era exatamente isto que estava à minha frente. Comecei a dirigir lentamente o meu olhar para cima, acompanhando aquela bizarra construção, e ela era alta. Muito alta. Quando meus olhos chegaram ao alto, muito alto, encontrei o barulho que eu estava escutando. Lá em cima, lá no alto, passava uma gigantesca estrada de quatro ou cinco pistas. Os carros velozes, muito diferentes das kombis velhas que via na pequena estrada abandonada e esquecida, passavam provocando um barulho distante, uma vibração assombrada. A velocidade que eles passavam, nem sequer existia lá embaixo. Tudo isso eu apenas imagino, pois lá de baixo, via-se apenas o lado debaixo de uma pista, que vibrava vez ou outra e fazia um som grave que já era parte da vida daqueles camponeses, naquele lugarejo esquecido, que um dia deixou de estar no meio do caminho para ficar num vale, embaixo de um óvni gigante e barulhento. Aquela estrada pousou sobre a vila como algo vindo de outro mundo. Uma nave espacial que veio para ficar e transformar a vila sem dar-se conta de sua existência. A vila, acabou também por acostumar-se àquela estranha nave.
Pensei nas centenas de carros e caminhões gigantes que passavam a cada dia por aquela auto-pista sem saber que, literalmente, passavam sobre uma pequena vila, com pessoas simpáticas e amoras. Levavam poucos segundos para atravessá-la e deixá-la esquecida com seu barulho. Virei para o senhor que, na sua velocidade, ainda estava ao meu lado, pois pouco havia avançado, e perguntei: O senhor já foi ver a estrada lá em cima? Ele sorriu e disse: Não. É muito longe. E era mesmo. Os acessos à estrada ficavam a muitas dezenas de quilômetros dali. Além disso, nada tinha aquele mundo a ver com o mundo daquele senhor, que vivia sob a estrada, aproveitando dela apenas seu barulho e sua sinistra sombra. Eram mundos distintos.
Assim é o nosso mundo. Uma sobreposição de mundos. Em alguns deles, vivemos nós. Em outros, vivem outros, passando dia-a-dia sob nossos pés e sobre nossas cabeças, sem que nós percebamos sua existência, e eles a nossa. Ampliar nossa consciência também é perceber outros mundos sob nossos narizes, e conhecê-los.