Plágio Desconsolado
“ ... no tempo em que festejavam o dia dos meus anos eu era feliz e ninguém estava morto...”
Esta crônica é um plágio descarado e assumido não só das palavras de Fernando Pessoa, mas sobretudo, da nostalgia desconsolada de suas estrofes.
Certas datas sempre me trazem uma certa angustia saudosa dos tempos em que eu era feliz e ninguém estava morto.
O poema continua, como se fosse possível recuperar aquela sensação de imortalidade, que só os muito jovens podem ter impunemente.
...o que fui de amarem-me e eu ser menino...
A casa antiga cheia de parentes distantes, as tias, os primos, a gente diferente que só aparecia nessas ocasiões, beijando a mão e pedindo: “bença mãe”, “bença vó”.
...o que restou hoje é terem vendido a casa, é terem morrido todos...
A grande mesa da sala espichada com todas suas tábuas para acomodar todos, a matriarca na cabeceira, comandando. As crianças segregadas na copa, a curiosidade atiçada pela novidade das visitas.
Eram encontros raros, esporádicos que rendiam exclamações de surpresa por constatar o crescimento da nova geração, suspiros conformados ao notar os vincos do tempo nos rostos envelhecidos pela idade e pela vida.
Depois de passada a comoção inicial, o almoço farto regado a assuntos intermináveis e alguns arranca-rabos entre essa gente de sangue quente e sem papas na língua. Não durava muito o estranhamento, apenas até Vó Véia, dona da casa e das almas de todos seus descendentes, decretar com um tom de voz que não permitia questionamentos, o fim da perenga. Era um ritual imutável, uma espécie de jogo familiar, no qual só a data que estava sendo celebrada era diferente.
Nos aniversários o bolo com as velinhas, bolo caipira vestido de gala, com recheio de cocada e ameixa, enfeitado de suspiro branco.
No Natal o presépio no lugar de honra da sala, a missa do galo, a expectativa dos pequenos em torno dos pacotes vistosos e, novamente a mesa farta e espichada. Mas a Semana Santa era a mais especial, tinha um ar triste, um silêncio reverente, pouco doce e pouco riso, até os passarinhos nas gaiolas das numerosas janelas cantavam com maior solenidade.
...e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas...
As procissões que passavam pela rua traziam o murmúrio das rezas, o alarme das matracas anunciando a tragédia revivida a cada ano.
O cheiro de velas e flores na igreja escura contribuía ainda mais para as fantasias lúgubres que nem a promessa da ressurreição e do ovo de chocolate conseguia aplacar.
No tempo que festejavam o dia dos meus anos, de não ter as esperanças que os outros tinham por mim, no tempo que ninguém estava morto, sequer suspeitava a nostalgia desconsolada que trago hoje.
... raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira...
As partes em itálico são do heterônimo de Pessoa, Álvaro de Campos, em Aniversário.