Ruth de Castro, cem anos de música
Cem anos de idade, oitenta de canto coral, pelo menos trinta como regente: esses são alguns dos números que marcam a vida de uma discreta senhora chamada Ruth de Arruda Castro, a quem a cidade de Itu deve muito, pela atuação na música local.
Na entrevista que a centenária maestrina concedeu ao Museu da Música, na semana passada, observei aquela mesma lucidez de sempre, a firmeza da memória, a lembrança viva da infância, do tempo em que foi aluna de música dos filhos de Tristão Mariano da Costa – Nhonhô Tristão e Nhanhã Bauer - como os chama, carinhosamente; da época em que ingressou no coro infantil da Igreja do Carmo, em 1922, da atuação na Revolução Constitucionalista de 1932. Essa memória antiga convive com claríssimo conceito de atualidade, que não deixa de lado o universo da música que encanta a senhora desde que era uma talentosa menina.
Conta que, certa vez, balançava na rede da casa, na Rua Joaquim Borges, cantarolando a Jaculatória de Nossa Senhora do Carmo, que aprendera na igreja, no momento em que passava pela rua a organista do coro adulto da mesma igreja, Lídia Novelli. A musicista não acreditou que aquela voz de soprano tão afinada e firme, que aquela consciência musical era de uma garota de onze anos, precoce cantora. Exibiu-se envergonhada, à curiosa organista, cantando atrás da porta!! Essa discrição marcou toda a sua existência, absolutamente avessa ao exibicionismo, sempre escondida nos coros das igrejas, distante do olhar dos ouvintes.
Quando ingressou no Coral Vozes de Itu, em 1967, trouxe experiência ao grupo, a formação musical de piano e canto, de teoria musical que aprendeu com Tristão Júnior e outros mestres de seu tempo. Tornou-se regente-assistente por muito tempo e titular por pelo menos três anos.
Aos 65 anos resolveu dar nova vida a um coro adormecido - da Igreja Matriz de Nossa Senhora Candelária - assumindo o posto outrora ocupado pelos grandes mestres da música ituana. Os tempos eram outros, a música paroquial sofrera com a reforma conciliar, perdendo brilho daquele repertório antigo. Ela organizou um grupo de 45 membros, semanalmente atuante. Gente da comunidade, que não conhecia os rigores da linguagem musical, se misturou a experientes cantores, fortalecendo a vida da música em Itu.
Todos nós, cantores de música sacra, bebemos dessa fonte de experiência, ouvindo-a e vendo-a executar a música nas solenes celebrações, como durante a Procissão de Passos, outra tradição que ela manteve viva para que pudéssemos ver e ouvir. Ela também foi Verônica na Semana Santa, por duas vezes; ao longo da vida ensaiou pacientemente tantas e tantas jovens que sonhavam em cantar o papel daquela mulher oculta que encontrou o Salvador no caminho da sua agonia.
Há dez anos, porém, a impossibilidade de enxergar com clareza lhe reduziu a atividade externa. Perto de completar 90 anos afastou-se definitivamente do Coro Paroquial e, sem estímulo, o grupo desapareceu.
A maestrina Ruth de Arruda Castro vive hoje os melhores dias de sua vida, cercada do carinho da família, dos amigos que a visitam frequentemente, gente que cantou com ela, que vibrou com a possibilidade de tomar parte de um coro, entoar belas melodias, desafiando os limites do amadorismo, ganhando qualidade pela competência da afinadíssima regente. Seu bom gosto musical nunca deixou morrer um importante repertório musical, que foi oferecendo para que outros coros continuassem cantando.
Nesse momento feliz, em que ela completa seu centenário, não posso deixar de agradecer, pelo que aprendi, pelo que tenho aprendido, pela sua gentil colaboração com a memória da música ituana, oferecendo o acervo pessoal de partituras, fotos, objetos, ao Museu da Música, para que possamos compreender melhor o tempo em que atuou.
Neste domingo, novamente a Igreja do Carmo se encherá de boa música sacra, dois coros - Marianos do Carmo e Vozes de Itu - cantando e louvando a alegria de viver da notável senhora, que contagia quem acompanha seus passos firmes. Serão acordes de júbilo e gratidão.