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Publicado: Segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Uma língua, muitos povos

Uma língua, muitos povos. O português amadureceu durante séculos naquela parte do continente europeu, até que as grandes navegações do Século XV o semeassem por todo o mundo.
 
Deixando a polêmica de lado - há quem afirme que tudo não passa de articulação de editores, para ampliar o mercado de livros didáticos e dicionários -, o Acordo Ortográfico assinado pelos líderes da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa deverá tornar mais simples as regras de acentuação, além de oficializar o uso do k, do y e do w, que, na prática, já convivem com as 23 letras do alfabeto e o c cedilha em livros de referência como o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.
 
Para os brasileiros, o início da vigência das novas regras a partir de 2009 (com três anos para adaptação, nos quais será facultativo escrever de ambas as maneiras) deverá levar a um contato mais aprofundado com a chamada norma culta da língua. E, como ficou registrado no excelente trabalho de reportagem do jornalista Fernando Guimarães, publicado no Caderno de Domingo deste jornal (Veja como será a nova Língua Portuguesa, 26/10/2008, págs. D1 a D4), não se descarta certa dose de desconforto, especialmente para as crianças que começaram a aprender a ortografia de um jeito e, agora, terão que assimilá-la de outro.
 
Mas a mudança ortográfica é vista com otimismo por muitos especialistas, que apontam, entre os possíveis benefícios, uma integração cultural mais expressiva entre os países lusófonos. Estamos falando de um universo de 230 milhões de pessoas, que faz do português a sétima língua mais falada dentre as mais de 6.700 existentes no mundo, e tem no Brasil, com 190 milhões de habitantes, o país com maior número de falantes.
 
Formado a partir do século IX, do encontro do Latim dos dominadores romanos com as línguas faladas na região da Península Ibérica (daí afirmar-se que é uma língua neolatina e românica), o português amadureceu durante séculos naquela parte do continente europeu, até que as grandes navegações do Século XV o semeassem por todo o mundo. Quem observa a presença lusófona no mapa-múndi percebe claramente como a língua se irradiou a partir de Portugal, cruzando o oceano Atlântico e contornando o continente africano a bordo das caravelas.
 
É claro que a língua, apesar de representar um elo fortíssimo, não é suficiente para construir, por si só, uma identidade cultural entre os povos que a adotam oficialmente (caso de Brasil, Portugal, Angola e Moçambique, entre outros) e daqueles onde é falada por uma parte da população, ao lado de línguas e dialetos locais (como Macau e Timor). Mais que a forma, a língua é um conjunto de signos lingüísticos, e estes, naturalmente, apresentam grandes variações não apenas de um país para outro, mas até mesmo entre regiões de um mesmo país.
 
Ainda assim, é interessante notar como a literatura e, mais recentemente, a internet, com seus mecanismos de busca que permitem pesquisar nas páginas em português, lançam pontes entre povos com realidades tão distintas. No ano passado, um texto publicado nesta coluna (Uma mulher atual, 08/03/2007) foi reproduzido no jornal on-line O Liberal, de Cabo Verde, arquipélago localizado a 640 km da costa africana, que adota o português como língua oficial. Desde 2004, as antologias literárias organizadas pelo editor sorocabano Douglas Lara contam com a participação de autores de Portugal e Angola.
 
Em que grau a unificação ortográfica irá estimular esse intercâmbio, é impossível afirmar por enquanto. Pelo menos na literatura, as diferenças ortográficas não foram, até aqui, obstáculos relevantes. Mas o mesmo não se pode dizer dos livros paradidáticos, usados nas escolas para estimular a leitura e permitir a reflexão sobre temas atuais - e que poderão ampliar seu mercado, na medida em que deixem de contrariar normas ortográficas regionais.
 
De toda maneira, a unificação ortográfica já produziu um benefício: permitir que muitos brasileiros se percebam integrantes de um contexto lingüístico e cultural que vai muito além das fronteiras do país em que vivem. (Notícia publicada na edição de 27/10/2008 do Jornal Cruzeiro do Sul, na página 3 do caderno A).
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