UTI na UTI
Os olhos públicos devem estar atônitos e colapsados com a imprudente e impulsiva declaração do governo que irá regulamentar quem vai ou não para uma UTI, de norte a sul do país.
Um medo impensado deve correr pela espinha ao se imaginar que algum parente ou nós mesmos poderíamos ficar nessa fila de espera e terceiros julgariam se temos ou não direito a um cuidado intensivo, urgente e no borderline entre a vida e a morte.
Na verdade, o governo abriu os olhos a um problema de longa data, mas meteu os pés pelas mãos ao precipitar a opinião política e pública sobre esse caos nas unidades de terapias intensivas do país.
Poucos sabem que existem apenas cerca de 21 mil leitos de UTI para um país tão imenso, necessitaríamos de mais 5 mil leitos para atingirmos o percentual mínimo de 4 % dos leitos hospitalares totais. Fora essa carência absoluta e física, as desigualdades aumentam em várias regiões do país (principalmente nos “interiores”) e apenas 10 estados se enquadram nesse percentual, outros 17 disputam na unha uma vaga, que é desprovida de critérios mais claros.
Há relatos de vagas ocupadas indevidamente por conta da pressão familiar, as estatísticas apontam globalmente para apenas uma ocupação de 60 % desses leitos, refletindo uma ociosidade virtual que não vemos na prática; os médicos-intensivistas são escassos e somam menos de 9000 no Brasil (devidamente qualificados) — o número necessário é de no mínimo o dobro.
Num cenário de falta de qualificação profissional, má gestão desses leitos, má distribuição global e carência generalizada, a população fica refém da falta de regras e os médicos continuam assumindo veladamente o papel de decisores de um problema de saúde global, cujo desfecho, às vezes é letal.
As estatísticas também mostram que cerca 15 % da ocupação desses leitos é feita por pacientes incuráveis ou irrecuperáveis. Sem entrar no mérito da eutanásia ou da distanásia (prolongamento da vida artificialmente), a morte também é um processo que deveria ser humanizado, provido de qualidade e de carinho familiar, que poderia ser feito de forma mais digna fora de uma UTI.
A falta de profissionais especializados leva a indicações inseguras e às vezes desnecessárias de um leito de UTI e já abriu dentro da Câmara de Bioética do Conselho Regional de Medicina de SP discussões para regulamentação e proteção ao ato médico.
Então, saudáveis leitores, o problema não é o governo mandar ou não em um leito de UTI. O problema é regular, priorizar, humanizar, credenciar mais leitos, utilizar leitos de urgência intermediária (os semi-intensivos), qualificar os médicos, tomar conta dos recursos e proteger o usuário.
Ninguém em sã consciência é a favor que se decida burocraticamente entre a vida e a morte, nem mesmo os intensivistas que são os mais onipotentes dos médicos por estarem tão perto da fronteira divina e atuarem de mãos dadas com Deus.
Temos que fortalecer a discussão humanitária sobre o bom uso dos recursos disponíveis para brigarmos por mais recursos. No SUS ou no setor privado, a boa administração amplifica os focos e não minimiza sarcasticamente a dor alheia. São Paulo é um estado privilegiado, com cerca de 8 % de leitos de UTI, mas o que dizer da necessidade dessa UTI no meio do estado do Alagoas? O governo tem por obrigação agir e rápido.
Vale a reflexão:
“Direitos iguais quando a diferença inferioriza e direito de ser diferente quando a igualdade descaracteriza”