Colunistas

Publicado: Segunda-feira, 13 de novembro de 2006

Visão Noturna

Na sacada de apartamento do 11º andar do isolado prédio, sito numa das avenidas mais charmosas de Campinas, aquela senhora, sozinha, na frescura da noite calorosa, apesar do inverno, medita. Já está bem idosa, mas até há alguns meses atrás, a sua saúde era bem razoável para uma nonagenária. Vê as luzes da cidade como que piscando, algumas torres mais altas com cores avermelhadas e a lua nova bem arredondada, permitindo até divisar algumas estrelas... Não gosta muito de pensar, mas parece que estaria chegando o seu tempo de partir deste mundo...

Nunca apreciou muito refletir sobre este assunto (como parece acontecer com todos), pois talvez tenha receio da morte e, profundamente religiosa, conhece detalhes da vida futura, especialmente no que diz respeito à premiação que aguarda a todos os justos. Não seria pois medo, propriamente, mas o sofrimento de abandonar tudo aquilo que durante a vida acumulou, inclusive os fatos e situações que sempre enfrentou com destemor porque recebera a graça de ser constante e resignada lutadora cristã e católica.

Jamais se revoltou com as cruzes de sua vida, espirituais e materiais, como na época da morte de sua mãe, companheira dos melhores anos, ou do falecimento do seu marido, bem mais jovem do que ela. Também se conformou com os graves ferimentos à bala (na perna direita), provocados por assaltantes desalmados, aos oitenta e seis anos de idade! Mas agora é duro suportar esse cansaço para respirar, que a impede até de falar, coisa que gostava tanto e fazia tão bem, professora que fora a vida inteira! Pensar que chegou a sua vez e que a qualquer momento poderá ingressar na outra vida, onde todas as preocupações da rotineira existência nesta terra desaparecerão por completo; que se defrontará com a eternidade e, então, tudo aquilo que considerava mistério será desvendado!

Mesmo assim, tem medo de partir. Ainda pretende voltar ao médico, exigir remédios para melhor recuperação. Tentar aproveitar de forma mais adequada os dias que lhe restam, vivendo mais próxima daquelas pessoas que ama e lhe correspondem. Talvez ainda possa ser útil em mais alguma coisa; ao menos sua prestativa serviçal não ficará sem emprego tão já e continuará ajudando materialmente aquela outra que lhe faz companhia à noite. Sua cabeça continua firme e lúcida, somente conturbada pelas últimas enfermidades, todas indesejáveis e inesperadas.

Chamam-na para se recolher, pois a noite resfriará bastante até a madrugada e a aurora virá indicar o recomeço de novo dia. Todos que têm saúde se encontram felizes, e plenos de esperança, com a chegada das horas noturnas de repouso. A sua fadiga, que lhe vem pesando, sem dúvida, mercê de Deus,não lhe permitirá outros pensamentos. Mergulhará no mistério da noite e Deus, induvidosamente, a preparará para o futuro, que deverá ser referto de felicidade.

Comentários