Você tem fome de quê?
Se nada é por acaso, começo aqui a narrar uma estória que vivi como Gestora da Saúde de alguns milhares de pessoas. É, isso fez a diferença. Antes, como médica, fazia gestão do meu próprio consultório, individualizava as pessoas, era parcial e acomodada.
Quando incorporei a Saúde Pública, fui tomada de uma inquietação e ansiedade que impregnaram pra sempre meu comportamento confortado nas minhas raízes.
Em Porto Feliz, assumi a maturidade de poder enxergar além das fronteiras e problemas cotidianos e olhar mais profundamente para as determinações sociais que nos cercam e afetam coletivamente a saúde das pessoas.
Quando comecei a trabalhar com a FOME, confesso minha descrença; parecia tudo mais difícil, pouco criativo, silencioso, cansativo. Meus Agentes Comunitários de Saúde me tiraram da inércia na marra, com seus relatos sentidos e apaixonados que acompanhavam nossa primeira avaliação familiar sobre segurança alimentar. Fui abduzida. Nasceu o PROQUALI (Programa de Reforço e Qualificação Alimentar) em 2007, que mapeou a alimentação de todas as famílias inseridas na Estratégia Saúde da Família de uma pequena cidade.
Ao depararmos com cerca de 50 famílias em miséria absoluta traduzida academicamente como “insegurança alimentar grave”, houve um “click” geral. O PROQUALI trazia uma proposta inédita: parceria entre produtores rurais de agricultura familiar beneficiados pelo Programa de Aquisição de Alimentos do Governo Federal e um projeto para acompanhar famílias e tirá-las da condição de FOME absoluta, restituindo a saúde perdida.
Mais de 3 anos depois somos um exército: 3 cooperativas, 170 voluntários, 350 famílias abrigadas num projeto que dá alimentos e restaura a dignidade da sobrevivência; distribuímos mais de 330 toneladas de alimentos. Acompanhamos passo a passo essa saborosa mudança.
Não damos o peixe, ensinamos a pescar. Ampliamos a parceria com a inserção de todas as famílias no Bolsa Família para início da sustentabilidade dessa dignidade perdida.
Tenho orgulho dessa nossa estória e o mérito não é meu, é um mérito coletivo, pactuado, entusiasmado, crescente. Quem se envolve, muda o “norte” do coração.
A fome é um dos OBJETIVOS DO MILÊNIO DA ONU (aliás, o primeiro dos oito determinados) e nosso ex-presidente Lula recebeu esse ano um prêmio instituído em 1986 pelo Nobel da Paz Norman Borlaug, que reconhece pessoas que “contribuem para o avanço do desenvolvimento humano ao melhorar a qualidade, quantidade e disponibilidade de alimentos no mundo”. Jose Graziano (ex-ministro da Segurança alimentar e Combate à Fome) hoje é parte da ONU e tem esse mesmo desafio pela frente, no mundo.
Temos uma meta de reduzir a fome em 15 %. Estamos no epicentro dessa determinação social, que é urgente.
O número de domicílios brasileiros onde as famílias admitem que não têm alimentos em quantidade e qualidade era 30,2% em 2009. Cerca de 11,2 milhões de pessoas no país ainda convivem com a fome, privação de alimentos e insegurança alimentar grave.
"A fome é consequência da pobreza e também sua causadora. Para romper este círculo vicioso, é fundamental unir toda a sociedade".
O PROQUALI é uma sementinha local, mas o empenho com que ele nasceu e cresceu é exemplo nacional, reconhecido pelo premio Pró Equidade em Saúde 2011, do Ministério da Saúde e CONASEMS (Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde) e será modelo na Conferencia Global de Determinantes Sociais da Saúde em outubro, no Rio.
Estamos certos que não ocupamos mais nem tempo e nem espaço de Deus à toa. Estamos unidos e fortalecidos na determinação de construir um mundo melhor, mesmo que isso seja apenas no nosso mundinho cotidiano!
Obrigada Sergio Zanetta (pelo pecado original), Luciana Ambrosini (por ser minha “filhote” apaixonada), Francies Oliveira (por ser mãe em tempo integral do mundo) e Claudio Maffei (pela oportunidade e credibilidade)!!
E obrigado por lerem essa estorinha interiorana que está mudando a vida (e o coração) de muita gente... Isso é só o começo do que ouvirão falar de nós, folks!!!