Publicado: Sábado, 24 de março de 2007
Os artistas do lixo
Quando eu entrei, minha amiga perguntou: “Você tem preconceito com lixo?” Eu respondi que não. Era uma meia verdade. Por menor o preconceito, entrar em um depósito inundado por montanhas de lixo, com delicado perfume de sujeira não é lá um programa tão agradável para uma quinta-feira, ou para qualquer dia.
Mas eu estava enganada. Ao ultrapassar a barreira do cheiro e do mal estar inicial, encontrei um verdadeiro oásis de beleza. Determinação, disciplina, solidariedade, consciência, amizade e até mesmo alegria foi o que eu vivi nesse espaço da Comarei, uma cooperativa de materiais recicláveis que funciona em Itu desde 2000.
Saí de lá extremamente tocada com a humanidade e com os exemplos de pessoas que muito têm a ensinar para qualquer um que se aventure a entrar naquele terreno.
Quantos de nós têm a consciência de estar efetivamente contribuindo com a preservação do meio ambiente? Os nossos filhos ou alunos, que estudam em escolas públicas ou particulares, enxergam as nossas ações de preservação?
Um dos cooperados, que participa da Comarei há 4 anos, me contou: “Eu acredito que a gente ajuda demais na preservação, como cooperado e como pessoa também. Eu ensino os vizinhos, porque eles não faziam isso antes. Afinal, é importante para o futuro da gente, dos nossos filhos e das crianças”.
Em um ano de coleta seletiva realizada pela COMAREI, obteve-se os seguintes ganhos ambientais: 20.400 árvores preservadas; 3060 m3 de espaço disponível no aterro sanitário municipal; 546 toneladas de areia foram poupadas; 600.000 litros de petróleo foram poupados.
Será que nós temos essa consciência e que praticamos ações efetivas?
Esse mesmo homem, com sua sabedoria, nos trouxe uma linda imagem: ““A reciclagem é igual a maré do mar: às vezes dá muito, às vezes dá pouco”. Ele veio de Fortaleza com 14 anos e traz a grandeza do mar dentro de si.
Mas o que mais me emocionou foram os sorrisos. Envergonhados, curiosos ou vaidosos, eles me acompanharam o tempo todo. Eu registrei vários deles com minha câmera e só parei porque precisava sair. Foi curioso, passar de um estado inicial de “querer sair logo” para “querer ficar muito mais”.
E a dona Francisca então? Nossa! Que ensinamento! Essa mulher recolhe todas as bonecas jogadas no lixo, leva para casa, reforma e doa para um orfanato, fazendo a festa das crianças. Cheguei em casa e contei para os meus filhos, que ouviram com olhos impressionados.
Eu nunca tinha parado pra pensar que uma boneca velha jogada displicentemente no lixo poderia ganhar nova vida pelas mãos de um artista. Sim, porque a Dona Francisca é uma artista que transforma nada em tudo. Assim como Dona Dulcelina, que faz tapetes com retalhos de tecido.
As montanhas de PET, caixinhas e garrafas continuam vivas em minha memória. Mas o que ficou tatuado foram os exemplos dessas pessoas. Ao todo, 51, que trabalham diariamente recolhendo, separando e limpando o lixo para reciclagem.
Não é à toa que eles são verdadeiros artistas, tecendo e transformando nada em tudo. Inclusive em fonte de sustento.
Acho que celebrar a vida é aprender a enxergar beleza e oportunidade em qualquer situação. Até mesmo no meio do lixo. E isso, eu posso testemunhar, não é nada difícil para as pessoas da Comarei.
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