O que o fogo não pode destruir...
Moradores do Vila Lucinda recomeçam a vida pós-incêndio.
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Por Renan Pereira
O ventilador isolado no meio da enorme sala mais parece uma obra do mestre Duchamp do que outra coisa qualquer. O cenário de fundo, constituído basicamente por bolas de futebol e troféus de campeonatos amadores, faz contraste com o opaco dos poucos imóveis que se encontram no sentido oposto do salão. Se possuíssem a bênção da vida, com certeza, a garrafa de café-com-leite e as bolachas-de-água-e-sal protestariam contra o ambiente quente em que se encontram. O violão, solitário num canto da sala, daria vozes às suas próprias cordas e entoaria uma canção doce-amarga. O pequeno espelho, suspenso na parede, pediria para que as janelas fossem abertas e que as luzes fossem acesas...
Afinal, somente os colchões espalhados pelo chão e o fogão que dá abrigo a cinco panelas fazem o Ginásio de Esportes Primo Schincariol se parecer com algo que ele não é: uma moradia. Maria Clécia e outros seis desalojados convivem nesse ambiente paupérrimo desde que assistiram suas casas serem estraçalhadas pelo incêndio ocorrido na quinta-feira (18 de novembro), no Vila Lucinda, em Itu. Além deles, outras quarenta e quatro pessoas estão morando em ambientes improvisados. As casas dos parentes têm sido a principal salvação... pelo menos para alguns. “No nosso caso, como não temos nenhum parente em Itu, estamos contando somente com a ajuda de outras pessoas mesmo”, explica Maria, que veio do Pernambuco há aproximadamente dois anos com o marido (Genielson Laurendo) e com o filho pequeno, Robson.
Em pouco mais de meia hora de bate-papo, ela me contou sobre o momento exato em que as residências foram atingidas. “Estávamos na sala assistindo TV e começamos a sentir um cheiro de queimado, mas não nos preocupamos. Poucos minutos depois o cheiro voltou. Daí saímos para ver o que estava acontecendo e já vimos a primeira casa pegando fogo bem alto. Depois disso a gente correu, pegamos alguns baldes de água para tentar apagar, mas já não tinha mais como”, relata Maria, enquanto o pequeno Robson se diverte com objetos que não interessam mais aos adultos. De acordo com ela, foi possível salvar pouquíssimas coisas do seu barraco. “Lembrei do violão do meu esposo, porque sei que ele adora tocar, e dos meus documentos. Depois que o incêndio terminou, ainda sobrou o meu fogão. O fogo não conseguiu chegar até ele”.
Desde o ocorrido, os moradores improvisados do Primo Schicariol se viram como podem, recebendo doações da população e da prefeitura. “Eles estão trazendo várias coisas para a gente. Roupas, comidas e colchões. O que faz mais falta para a gente aqui é uma geladeira. Se você tentar beber essa água, por exemplo, você não consegue. Porque o lugar aqui é muito quente e isso atrapalha”. Só uma geladeira mesmo? - questiono. Tímida, ela confessa... “TV e outras coisas que fazem a gente relaxar também”.
Com tantos impasses, a vida ainda parece andar na contra-mão do bem-estar do casal. “Aqui a gente até sempre consegue emprego; melhor do que Pernambuco. Só que o grande problema é que não consegue nada fixo. O meu marido ta fazendo bico agora. Lá, ele era músico; tocava em vários lugares. Mas aqui ele diz que não tem muito espaço pra isso”. Apesar dos obstáculos, Maria acredita que, de agora em diante, possa haver uma mudança radical em sua vida. “A reconstrução dos nossos barracos já começou. Mas eu tenho de voltar para lá. Porque qual é a garantia que a gente tem de que isso não vai acontecer de novo? Espero que as casas que prometeram para a gente fiquem prontas logo. Só assim podemos viver com dignidade”, diz.
Recomeçar do zero
A devastação passou. O que resta agora aos moradores do Vila Lucinda é recomeçar do zero. Quando cheguei ao local do incêndio mal podia acreditar que estava diante de pessoas que perderam todos os seus documentos, todos os seus objetos e toda a sua estrutura. Enquanto as crianças brincam na rua de terra com os poucos brinquedos que têm, homens de todo o tipo de porte físico trabalham de forma descontraída na reconstrução dos barracos de madeira. Mulheres conversam sentadas enquanto assistem seus maridos e parentes dando o próprio suor para refazer aquilo o que foi destruído pela força da natureza. Cachorros magros ficam ao lado de seus donos, como se estivessem de prontidão para uma possível emergência.
A reconstrução do Vila Lucinda conta com o serviço braçal de mais de cinquenta pessoas, entre moradores, amigos, vizinhos e alguns homens enviados pela prefeitura. Encontrei por lá, inclusive, o marido de Maria (sim, o Laurendo) colocando a mão na massa. “Acredito que em poucos dias já teremos construído tudo novamente”, afirmou o homem de frases curtas. O estilo simpático e bem ajeitado do rapaz não representa de forma alguma a complicada situação em que vive a família atualmente. “Realmente sobrou muito pouca coisa. Inclusive eu tinha uma entrevista de emprego pra ir nesses dias, mas acabei desistindo – já que até a minha carteira de trabalho se perdeu no meio do fogo”, conta Laurendo, que só ficou sabendo da desgraça quando chegou de um desses bicos que estava fazendo e se deparou com o cenário negativo.
Adriana Ribeiro, moradora da primeira casa a ser incendiada, também estava no local acompanhando as obras e afirmou que demorou para perceber o incêndio. “Eu estava tomando banho e por isso não percebi de cara. Comecei a sentir o cheiro de alguma coisa queimando e saí para ver o que estava acontecendo. Foi aí que me deparei com as cortinas da minha sala já toda em chamas”, explica. De acordo com os moradores da região, o Corpo de Bombeiros demorou muito tempo para chegar no local – fato que teria contribuído para que nenhum imóvel fosse recuperado. “Vários moradores ligaram, mas eles só chegaram muito tempo depois. Minha amiga foi a primeira a ligar e mesmo assim eles continuaram sem vir”, afirma Adriana.
Deixei o local depois de quase uma hora de bate-papo com os moradores. Na memória, cenas de um quadro positivo. Afinal, enxadas e serrotes funcionam como espadas na mão daqueles homens. Guerreiros reconhecidos somente dentro de seu próprio campo de batalha. Heróis que não estão nos cartazes de cinema e nem no horário nobre dos canais de TV. Seres humanos que, apesar de toda dificuldade que enfrentam, preocupam-se somente com o que está por vir. De quando em quando gritos que mais parecem uma briga, marcam o ambiente. São apenas os guerreiros que, felizes, começam a reconstruir o futuro. Se o fogo destrói objetos, a dignidade humana destrói o fogo.
Imagens feitas por uma moradora do local Imagens exclusivas do início do incêndio na Vila Lucinda
Entenda o caso
O incêndio aconteceu no 18 de novembro e atingiu 12 moradias situadas no Vila Lucinda, em Itu. O combate ao fogo foi f