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Terça-feira, 20 de outubro de 2015

O SUMIÇO DO MUNDO - Capítulo 3

O mistério visto do outro lado
Zarpando para o desconhecido

ACONTECEU NO CAPÍTULO 2:

Se uma porção de 384 km2 do território nacional desapareceu sem afundar ou explodir, sem deixar vestígio algum, ela poderia ter sido desintegrada por terroristas de posse de uma nova arma secreta. Ou teria sido uma formidável demonstração do poder divino? Contrariado com a corrupção e a dissolução dos nossos costumes, Ele teria feito sumir Ilhabela como um aviso de que o Fim do Mundo se aproxima. De qualquer modo, uma comissão de alto nível e os mais notáveis cientistas tentam explicar o fenômeno enquanto escafandristas esquadrinham o fundo do mar e apenas verificam que os cabos que levavam energia e telefone à ilha tinham sido rompidos com violência.

Vinte e seis dias depois do dia fatídico, uma das balsas da Ilhabela é descoberta à deriva, longe da costa de Santa Catarina, sem vivos nem mortos à bordo.


PARA LER A ÍNTEGRA DO CAPÍTULO 2, CLIQUE AQUI.

O mistério visto do outro lado

Na noite daquela quinta-feira, 9 de agosto, a morena Selene (19) tinha concordado em sair com Gesualdo. Seria a primeira vez. Ele ia telefonar para Gesuína, sua mãe, avisando que chegaria mais tarde para o jantar, quando soube da suspensão dos serviços de travessia do canal. Ligo depois, pensou. Pegou a bicicleta e foi esperar a moça na saída do Hotel Porto Pacuíba, onde ela trabalhava como copeira. Selene o fez entrar e, sob o olhar benevolente de Bel, a gerente, lhe serviu um bom prato de sopa na cozinha. Depois os dois foram andando em direção à praia do Siriuba. Sentaram-se na beirada do deck de um bar que só abria nos fins de semana. Fazia frio, aconchegaram-se; timidamente ele procurou a mão dela, ela encostou a cabeça no ombro dele, falavam com doçura de coisas sem importância. De repente ele olhou para o relógio:

— Mais de onze horas! Minha mãe está me esperando, preciso avisar!

Pensou numa desculpa e ligou no celular:

— Mamãe, a cerração não tem cara de passar logo, vou ter que ficar na ilha. Não se preocupe, estou com um colega, vou dormir na casa dele, assim chego no serviço logo cedo... Sim, sim, jantei uma sop/

A ligação caiu. Enquanto ele tentava discar de novo, Selene perguntou:

— Você vai dormir com quem?! Comigo é que não, já vou levar bronca por chegar tarde em casa!

Nesse instante ouviram um estalo e todas as luzes se apagaram. Só os faróis dos raros carros que passavam cortavam a escuridão. Felizmente a bicicleta de Gesualdo tinha farolete. Foram buscá-la e ele acompanhou Selene até em casa, na Ponta Azeda, 2 km adiante. No caminho, ele comentou:

— Na hora do apagão, senti o chão tremer um pouco. Você sentiu, Leninha? – ele já se permitia a intimidade de abreviar carinhosamente o nome dela.

— Não senti nada, Gê. Só um susto.

Na volta, Gê parou no mirante que existe logo depois do Saco de Indaiá, no alto de uma curva. De lá, em dia claro, descortina-se uma vista da Vila e das praias do lado sul, com o iate clube em primeiro plano. Gê não conseguiu enxergar nada, a ilha estava mergulhada em vapor e trevas. Pensou que, afinal, não mentira para a mãe, com aquela neblina as balsas deviam ficar paradas. Continuou pedalando. Ao passar pela praia da Vila, viu uma claridade difusa sobre o mar, uma luz incerta que aumentava e diminuía conforme a flutuação da cerração. Daquele ponto vinham, algo amortecidos, um bruaá de festa e os acordes de uma canção de Julio Iglesias. Como de costume, devia estar ancorado naquele lugar um transatlântico da Linha C.

Gesualdo chegou ao posto de gasolina em que trabalhava, no bairro do Perequê. Acordou o guarda que lhe abriu o depósito. Lá havia um colchonete que ele desenrolou e estendeu no chão para dormir. Foi despertado logo cedo pelo barulho de uma agitação incomum na rua. Era gente discutindo em voz alta, eram carros acelerando a caminho do porto, como se estivessem fugindo de alguma coisa. Notou que o céu estava limpo, sem sombra de neblina, e que a eletricidade ainda não tinha voltado.

— Sem energia as bombas não funcionam – disse ao guarda – Vou até o porto ver o que acontece.

No porto das balsas a confusão era total e ainda nem eram sete horas da manhã. Gente exaltada, expressões de pânico, crianças assustadas e choramingando. Buzinas tocando num congestionamento como não se via nem nos piores dias de temporada. Gesualdo juntou-se às pessoas que se apinhavam na ponte de embarque, olhou na direção em que todos olhavam e não viu nada. Nenhum navio, nenhum porto, nenhuma costa, nada de São Sebastião e nada de Serra do Mar. Nada além do mar e a linha nítida do horizonte.

Gê sentiu urgência de falar com a mãe e com Selene, mas o celular continuava desligado. Correu para o orelhão, mas nem conseguiu se aproximar, de tanta gente que também queria telefonar. A linha estava cortada e as pessoas que se apossavam do fone não se conformavam, discavam e discavam inutilmente.

Às nove horas o tumulto ficou incontrolável. Os quatro soldados da PM a postos não podiam conter a multidão que ameaçava invadir a única balsa atracada. Alguns exaltados insultavam e agrediam os tripulantes que tentavam afastá-la do cais. Foi quando alguns tiros dispersaram aquela gente desesperada. Os disparos não partiram dos soldados e sim dos passageiros de três reluzentes Toyotas Hilux, os quais, brandindo carabinas, abriram caminho e embarcaram seus veículos. Apontando as armas ora para a massa de gente que pretendia embarcar, ora para a cabina de comando, forçaram a balsa a desatracar e iniciar a travessia. Diante dos olhos atônitos de todos, os motores foram acelerados e a embarcação se distanciou na direção de sempre. Porém lá não existia mais nada. A balsa transformou-se num ponto no horizonte mas não chegou a desaparecer. O ponto tornou a crescer lentamente e, depois de meia hora, a balsa estava atracando de novo. Agora sem tiros, as Hilux desembarcaram e rodaram em direção à Vila, onde mais tarde seriam abandonadas. Seus passageiros optariam por uma viagem internacional, como leremos adiante.

Dois helicópteros decolaram do Condomínio São Mathias, um terceiro do Pindá Iate Clube, e rumaram para onde antes se avistava o continente. Regressaram uma hora depois. Nesse meio tempo, numerosos barcos brancos, a motor e a vela, tinham deixado a Ilhabela, tomando a mesma direção oeste. Ao cabo de poucas horas, quase todos já estavam de volta.

Embora os telefones de linha e os celulares continuassem mudos, a notícia de que algo extraordinário acontecera transmitiu-se instantaneamente a todos os habitantes da Ilhabela. A população se postou ao longo das praias e nos pontos altos da costa, e assim permaneceu contemplando aquele novo horizonte inteiramente vazio, sem nada compreender.

O medo tomou conta dos não residentes – os forasteiros, os turistas hospedados nos hotéis e pousadas e aqueles que estavam na ilha em visita a suas propriedades ou a negócios. Não sabiam o que fazer, para onde ir, o que esperar, como conseguir algum conforto. Buscando amparar-se uns nos outros, procuravam os vizinhos de condomínio e se reuniam nos pontos habituais ou nos iate clubes. Não havia energia elétrica e nenhum meio de comunicação funcionava. Algumas pessoas possuíam possantes rádios de pilha, mas em todas as frequências eles só produziam chiado. Os iate clubes dispunham de emissoras de rádio de grande alcance, alimentados por baterias de emergência, para controle da navegação. Nem estes, nem os aparelhos instalados nos iates mais bem equipados, conseguiam obter o mais remoto sinal, nem em código Morse. Essa incomunicabilidade gerava em todos uma grande apreensão. O medo se transformava em pânico e desencadeava cenas de histeria.

Para a época de baixa temporada, o Hotel Itapemar estava com um número incomum de hóspedes. No seu estacionamento encontravam-se carros com placas de São Paulo, Campinas, Curitiba, Ribeirão Preto, São José dos Campos, Itu, Salto, Sorocaba, Londrina, Belo Horizonte, Brasília, Goiânia, quase todos eles carros novos, de boas marcas. Havia também um BMW mais antigo, de Montevidéu. Os veículos pertenciam a casais de meia-idade e a algumas famílias bem vestidas. Havia poucas crianças. Estava também hospedada no hotel uma comissão de parlamentares que viera examinar a viabilidade de um projeto que previa a construção, numa das encostas, de um gigantesco tobogã de neve artificial, para a prática de esqui durante todo o ano, iniciativa que sem dúvida daria um grande impulso ao turismo e ao comércio local. A proposta tinha sido apresentada por uma multinacional austríaca que se propunha a financiar inteiramente o projeto em troca da concessão de sua exploração por 30 anos. Dado o seu traquejo em plenários, os cinco deputados e quatro senadores presidiam a mesa de uma reunião permanente, organizada por eles no salão de eventos, para discutir a grave situação de emergência que a todos afligia. A discussão era democrática, aberta aos hóspedes, aos diretores do estabelecimento e a quem mais quisesse. No começo, as jovens esposas dos parlamentares quiseram participar, mas pouco puderam contribuir; choravam continuamente e só diziam que queriam voltar para casa. Acabaram recolhendo-se a seus aposentos munidas de calmantes. Aliás, calmantes e tranquilizantes foram os primeiros produtos a faltar nas farmácias.

Na ausência de qualquer fato novo que pudesse alterar o estado de coisas, a discussão girava em torno de duas questões principais:

— O que será feito de nós?

— Por que aconteceu essa calamidade?

A maioria achava que acontecera um castigo divino. Outros pensavam que era o começo do Fim do Mundo anunciado por Nostradamus para o final do século XX: ele só se atrasara um pouco. Os otimistas aceitavam a explicação de que o Brasil afundara sob o peso da corrupção e só sobrara aquela ilha dos justos. Uma senhora se levantou e disse:

— Isto é um pesadelo. Vou dormir e quando eu acordar, passou!
Acompanhada do marido, deixou o recinto contrariada:

— Não quero ficar nem mais um dia neste lugar. Vamos embora amanhã cedo, logo na primeira balsa.

No hotel Porto Pacuíba, o ambiente era igualmente tenso. Lá os hóspedes também estavam reunidos – aliás as pessoas estavam reunidas em todos os lugares, ninguém queria ficar sozinho. Mas os hóspedes desse hotel, embora muito apreensivos, controlavam melhor suas emoções. Entre eles havia um grupo de alunos de arquitetura da Escola da Cidade, de São Paulo, em viagem de estudos; doze pacientes dos Vigilantes do Peso, em retiro terapêutico; três casais de meia-idade, um casal que parecia estar em viagem de núpcias e duas senhoras argentinas bem idosas que repartiam o mesmo quarto. Eram pessoas de culturas e condições sociais bem diferentes que, de alguma forma, entendiam que estavam submetidas a um fenômeno além de sua compreensão, talvez um feitiço. Não havia nada a fazer a não ser esperar que cessassem os efeitos desse fenômeno. Tanja Escudeiro da Silva (24), uma das estudantes de arquitetura, recordou um filme, Groundhog Day, com Bill Murray:

— Nesse filme, um feitiço faz com que todos os dias recomecem iguais, exatamente do mesmo jeito para todas as pessoas, e assim o tempo e a vida não avançam.

Nuestra situación – disse Consuelo Suarez (83), uma das senhoras argentinas – me hace recordar una otra película, donde la gente quiere pero no puede ni entrar ni salir de una casa. Un ángel exterminador no se lo permite. La película se llama justamente El Ángel Exterminador, la hizo Luiz Buñuel.

Mas ninguém sabia quem era Luiz Buñuel. Em vista da situação, as nutridas Vigilantes do Peso deram seu retiro por encerrado e se lançaram sobre o buffet de tortas alemãs, especialidade da casa.

Naquele dia tumultuado, Selene trabalhou como sempre e ao sair do hotel, no fim do expediente, encontrou Gesualdo à sua espera. Normalmente seria prematuro ela apresentar o namorado aos pais, mas dadas as circunstâncias, e considerando que ele estava sem poder voltar para São Sebastião, levou-o para casa e o apresentou ao pai, Pedro Iroquês de Araújo (62), a mãe Venúsia (44) e as duas irmãs, Marciana (22) e Netúnia. (20). Gesualdo era um garoto simpático, foi bem recebido e levado para a cozinha. Ao redor do fogão à lenha, onde se cozinhava uma sopa de peixe cheirosa, a família estava reunida com alguns vizinhos. À luz vacilante das velas, conversavam sobre os acontecimentos do dia.

Pedro Iroquês era um homem curtido, em plena força da idade. Marinheiro aposentado da Petrobrás, conhecera lugares bem distantes, como Arábia, Iraque, Argélia, Coreia, Brasília, China e fizera bom uso das demoradas escalas estudando inglês por correspondência. Depois, matriculara-se no curso de ciências políticas ministrado à distância pela Open University. Graduou-se pouco antes de se aposentar, mas não chegou a iniciar essa nova carreira, preferindo a vida simples com a família. Na Ponta Azeda, Iroquês exercia uma liderança natural. Depois de deixar Gesualdo à vontade (– Gesualdo? Não vou chamar você de Gesu, porque você não é Cristo. Gê está bom? Senta aí, Gê), Iroquês retomou o fio da conversa:

— Minha gente, nada de desespero, precisamos entender o que está acontecendo.

— Acontece que São Sebastião sumiu – disse Oraides (45), pescador de tarrafa – Também sumiu a Serra do Mar, Caraguatatuba e tudo, não se vê mais nada. De repente isso aqui virou mar aberto.

Custódio (42), mestre da traineira Fandango, falou:

— Se vocês olharem para o céu, dá para ver que ele está igual, as estrelas estão todas nos seus lugares. Isto quer dizer que nós não mudamos de posição. Se alguma coisa se mudou foi a terra firme, foi o Brasil.

— Certo, a terra, o Brasil sumiu, pode ter mudado de lugar – disse Pedro Iroquês – Mas por que então não tem mais luz, nem rádio, nem telefone, nem televisão?

— Quando eu vinha para cá, vi luz no Iate Clube e no Hotel Mercedes – disse o vizinho Gustavino (27).

— O hotel e o clube ligaram os geradores próprios – explicou Iroquês – Quer dizer que a eletricidade existe, não acabou. O que acabou foi a eletricidade que vinha do outro lado do canal. É de lá que também não chega mais o rádio, a televisão e o telefone. Isso significa que lá não tem mais estação de rádio irradiando nem Telefônica telefonando. Vai ver que lá não existe mais nada!

Fez-se um silêncio que Gesualdo se arriscou a interromper:

— Alguém escutou algum avião hoje? A rota da ponte aérea Rio-São Paulo passa aqui em cima. Eu não escutei.

— Se não escutamos aviões o dia inteiro é porque eles pararam de voar – concluiu Oraides.

— Estou sabendo que hoje a rádio do Iate Clube não pegou nenhuma estação do Brasil ou do mundo em qualquer frequência – disse Iroquês. – Sabem o que isso quer dizer? Que não teve transmissão de rádio no mundo todo. Nós não recebemos nenhum sinal de vida do Brasil nem do mundo! É isso pessoal, o mundo sumiu, o mundo
acabou e só sobramos nós aqui na ilha!

— Não dá para acreditar! – exclamou um coro.

Impressionada, Venúsia parou de servir tigelas de sopa e disse:

— Bem que o padre avisou que Deus ia acabar com o mundo, por causa dos nossos pecados.

— Mas nós não acabamos! – exclamou Selene – Será que somos uns santos?!

— Nós somos só uma merrequinha que Ele esqueceu. Já, já vai se lembrar de dar um sumiço em nós também – disse Venúsia.

Então as mulheres se ajoelharam e puxaram a reza em voz alta. Os homens ficaram murmurando de cabeça baixa, fingindo que sabiam o Padre Nosso.
Gesualdo e Selene saíram para ver se as estrelas continuavam mesmo nos seus lugares.

— O resto do mundo acabou – disse Gesualdo.

— Mas pelo menos estamos vivos – disse Selene, abraçando-o com força.

Zarpando para o desconhecido

No transatlântico Costa Chimera, as comunicações estavam em pane total desde as 23h30 do dia anterior. Não se captavam sinais de rádio, telégrafo, telefone, internet ou televisão. Assim que raiou o dia, o capitão Olmo Camerini (63) tomou a lancha e se dirigiu à terra; precisava telefonar para pedir assistência técnica do escritório da Linha C em Santos. Estranhou a grande quantidade de gente aglomerada sobre o píer e só então, olhando na direção em que todos estavam olhando, ele se deu conta do desaparecimento da outra margem do estreito. E em terra, ficou sabendo imediatamente que as comunicações da ilha inteira também estavam em pane.

Preocupado como nunca estivera na vida, o capitão Olmo fez reflexões semelhantes às de Iroquês e seus amigos, mas não concluiu que o mundo tivesse acabado. Pensava que uma arma atômica terrível, disparada por alguma organização terrorista enlouquecida, tivesse consumado o Armagedon bíblico. De volta ao navio, reuniu a oficialidade no passadiço e expôs a situação. Era preciso tomar uma atitude à altura da responsabilidade que recaía sobre a tripulação. Responsabilidade pelo patrimônio perante o armador, a Linha C, e responsabilidade pela segurança e o bem-estar dos 817 passageiros. O que ele, comandante, não podia admitir era o conformismo, não fazer nada. A gravidade do momento justificava uma decisão heroica. O capitão Olmo resumiu então um dos seus filmes preferidos, assim:

– Há muitos anos, vi um filme que me causou uma forte impressão. Foi On the Beach, com Gregory Peck e Ava Gardner. Passava-se depois de uma suposta Terceira Guerra Mundial. A radiação atômica tinha destruído toda a vida no hemisfério norte e avançava para o hemisfério sul. Logo iria atingir a Austrália, último reduto de vida sobre a terra, e o destino de seus habitantes era inexorável. Em Melbourne estava fundeado um submarino nuclear americano cujo telégrafo começou a captar um sinal Morse insistente, procedente de São Francisco, Califórnia. Possível sinal de vida onde se acreditava que ela já estivesse extinta. O comandante resolve então navegar até lá para investigar. Bom, o que eu decidi fazer é parecido ao que Gregory Peck fez no filme. Vamos investigar. Apesar da falta de comunicação, vamos tentar alcançar o Mediterrâneo.

— Se ainda estiver lá – atalhou o oficial de quarto, mas ninguém achou graça.

— Não posso obrigar ninguém a me acompanhar – continuou o capitão – os oficiais e os marinheiros que quiserem, podem desembarcar aqui.

— E os passageiros? – perguntou o segundo oficial.

— Eles também poderão escolher. Como muitos vão escolher ficar, a nossa capacidade ociosa aumentará. Por isso, ofereceremos às pessoas em terra a oportunidade de escapar desta ilha e viajar conosco. Poderão pagar suas passagens quando chegarmos a Gênova. Estamos de acordo? Então verifiquem imediatamente se temos os suprimentos necessários para, digamos, 20 dias de viagem. Algum porto haveremos de achar! Partiremos amanhã às 6 horas em ponto.

Os passageiros do Costa Chimera eram em sua maioria brasileiros de idade e aposentados, que haviam comprado passagens para um cruzeiro curto, saindo e chegando em Santos com escalas em Florianópolis, Ilhabela e Rio de Janeiro. A maior parte deles ainda não tinha notado a ausência da margem oposta do estreito e muitos reclamavam:

— Por que ainda estamos parados aqui?

— Já chega. Não quero mais passear nessa ilha!

— Esta noite não pude dormir por causa dos chorabudos – disse uma velha senhora.

— Borrachudos – corrigiu outra.

Ficaram entre apavorados e excitados quando, ao cabo de contínuas repetições do aviso transmitido pelo serviço de som e o circuito fechado de TV, perceberam a situação em que se encontravam.

— Não acredito. Deve ser outra brincadeira desse mágico, como é que se chama?

— David Copperfield. Essa é demais! Não teve também um tal de Christo que embrulhou num lençol toda a Muralha da China?

— Não, acho que ele embrulhou foi a Estátua da Liberdade.

— O quê? Vamos para Gênova?! Ah, essa não. Que direito eles tem de mudar o roteiro?

— Por mim, tudo bem, contanto que eu não tenha de pagar mais...

— Ah, isso não fica assim. Exijo meus direitos!

— Mas estão dizendo que, quem não quiser, pode desembarcar...

— Pois sim! O meu contrato diz: regresso a Santos. Vou ligar já para o meu advogado.

Os que quiseram desembarcar foram poucos. Para estes, o medo da uma viagem ao desconhecido era maior do que o medo de permanecer naquela terra que parecia muito pouco firme. Dali a nem duas horas, uma faixa de pano era amarrada entre dois postes atravessando a rua principal da Vila. Nela estava escrito em ítalo/espano/português:

COSTA CHIMERA.
ACCEPTA PASAJEIROS PARA GENOVA (ITALIA)
BILLETES EN VENDA DIRECTA NO PONTÓN
PARTENZA AMANHAN A LAS 6 DE LA MATINA.


Nunca houve propaganda mais eficaz. Em torno da mesa armada na Praça da Bandeira, fronteira ao píer, juntou-se uma aglomeração de gente que foi crescendo. Os três oficiais que deviam atender os candidatos à viagem chamaram mais cinco tripulantes para tentar organizar e colocar ordem na fila. Não aceitavam pagamento em reais, cheques ou cartões de crédito, mas as pessoas que tinham visível condição de possuir meios de pagamento eram admitidas mediante assinatura de nota promissória pagável no primeiro porto, qualquer que fosse.

Havia o problema dos passaportes. Nenhum brasileiro portava um, mesmo aqueles que já se achavam a bordo. Para viajar pela vizinhança bastava a carteira de identidade, mas para desembarcar na Europa... Otimista, o capitão Olmo resolveu:

— Resgatamos centenas de vítimas de uma catástrofe. Ao chegarmos a Gênova, as autoridades da imigração, do governo italiano ou europeu, sei lá, terão que decidir o que fazer com essa gente. Imagino que mandarão todos de volta quando a situação se normalizar. Só espero que voltem em outro navio, porque eu não quero trazer o meu de novo a este maledetto lugar.

À noite, quando foi anunciado que o navio estava lotado e a venda de passagens terminada, a aglomeração de gente continuava grande. Gente inconformada, revoltada, gesticulante, encarando aos gritos os tripulantes do Costa Chimera, que nada podiam fazer. A chegada dos nove parlamentares de Brasília e suas graciosas esposas revoltou ainda mais os ânimos. Alegando prerrogativas legislativas, eles exigiram nove camarotes, nem que fosse preciso desalojar outros passageiros. A presença do próprio comandante Olmo Camerini foi necessária para resolver o impasse. Seguiu-se um vai e vem de escaleres. Eles largavam no cais pessoas indignadas, com suas bagagens, e levavam para o navio os novos e esperançosos passageiros.

O SUMIÇO DO MUNDO
CONTINUA!

Na próxima terça-feira
Capítulo 4
No “outro mundo” e sem dinheiro
Nem todos os sumidos sabiam que tinham sumido
 

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