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Terça-feira, 3 de novembro de 2015

O SUMIÇO DO MUNDO - Capítulo 5

Em busca da terra
onde quer que ela esteja

ACONTECEU NO CAPÍTULO 4:

Pedro Iroquês exercia uma liderança natural sobre os moradores da Ponta Azeda. Ele os reúne para discutir a situação. A falta de sinais de vida fora da ilha indicam que aquele era o único pedaço de terra ainda existente e, eles, seus habitantes, os únicos sobreviventes. Essa noção apavora todos os presentes, muitos se entregam à histeria ou falam em castigo de Deus. Pedro procura impor a razão: “quem quiser se arrepender dos pecados, que procure a igreja. Eu convidei vocês para discutir o que fazer. Nós sobramos, estamos vivos, queremos continuar vivos. Vamos ficar parados, chorando, ou vamos nos mexer? Temos que pensar no que vamos comer”. Lembra que Ilhabela era uma estância turística e não produzia alimentos nem coisa alguma. Tudo vinha de fora. Em poucos dias faltaria até arroz e feijão. Todos teriam que se converter em pescadores, agricultores e criadores para sobreviver. Acrescenta que faltará algo até mais importante que os alimentos: o dinheiro. Praticamente todos os empregadores desapareceram, assim como os bancos, o INSS e qualquer outra fonte de pagamento. Ninguém mais receberia salário ou pensão, os cartões de crédito e os cheques de nada valiam. Quem tivesse poupança, não tinha mais.


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Em busca da terra onde estiver

Na quarta-feira, dia 15, o Dr. Emailson Mendes Jr., presidente do Sindicato dos Empregados do Comércio e Afins de Ilhabela (Sindecomi) convocou uma reunião de emergência da diretoria para “tirar” uma posição dos trabalhadores diante da paralisação das atividades comerciais no distrito. Depois de quatro horas de deliberação, foi aprovado por unanimidade um manifesto que 1) responsabilizava os empregadores pelo lock-out; 2) convocava uma greve de advertência para a) reclamar o pagamento dos dias não trabalhados enquanto perdurasse a insólita situação e b) garantir o recolhimento do FGTS, INSS e os demais benefícios devidos. Entretanto, por falta absoluta de meios – não havia nem energia para imprimir nem viaturas para distribuir o manifesto – este foi apenas consignado em ata e ficou sendo o penúltimo assentamento no livro de atas do Sindecomi. O último foi o de sua dissolução. Sem imposto sindical, a entidade não tinha como funcionar.

À medida que tomavam consciência da nova realidade, outras pessoas procuravam seus iguais para apoiar-se mutuamente. Era expressivo o contingente dos homens de negócio que se achavam na ilha, alguns acompanhados de familiares. Entre eles havia desde capitães de indústria até um frotista de ônibus, dois donos de bingos e o gerente de uma rede de sex shops. Todos estavam inconformados, sentiam-se vítimas de um naufrágio e, como todos os náufragos, só pensavam num salvamento miraculoso. No desespero, a maioria se afogava no uísque e na vodca, mesmo sem gelo.

O contingente de intelectuais era menor porém mais homogêneo. Ele compreendia profissionais liberais, doutores e acadêmicos aposentados, artistas e escritores, alguns deles residentes na Ilhabela. Eles se declararam em assembleia permanente e passaram a se encontrar na espaçosa casa do historiador Rodrigo Fragoso Telles que, logo na primeira reunião, colocou a questão:

— Como subsistiremos sem os recursos e os privilégios sociais que acabamos de perder? Como poderemos fazer valer nossos conhecimentos numa pequena comunidade compelida a dar toda prioridade à satisfação de suas necessidades básicas? É terrível essa ideia, mas precisamos encará-la, isto é, supor que nós e os vinte e três ou quatro mil habitantes da ilha sejamos os únicos sobreviventes de um mundo perdido. Vamos ser lúcidos, parece que estamos condenados a voltar à Idade Média, porque não dispomos de fontes de energia, não temos informação técnica nem mesmo para reinventar a roda.

— Você exagera, meu caro – disse o prof. Nicolau Pacheco (62), jurista emérito. — Nós fomos vítimas de um fenômeno inexplicável, fora das leis da física. O que acabamos de viver contraria todo o cabedal de conhecimento científico acumulado pela humanidade. Não é lícito, portanto, tomar por base esse nosso conhecimento, agora contestado pelos fatos, para concluir que o mundo desapareceu, que somos os únicos sobreviventes, que voltaremos à Idade Média. Nada impede que ocorra outro fenômeno igualmente inexplicável, reconduzindo-nos à realidade.

— Ademais – atalhou Laerte Mattos (48), cientista político – não temos dados suficientes para chegar a conclusões tão radicais. O fato de não avistarmos terra ao redor de nós não significa que não exista outra terra.

— Entretanto os barcos saíram, os helicópteros subiram e não encontraram nada – lembrou Rodrigo.

— E nenhum rádio capta sinal algum do mundo – acrescentou o engenheiro Juvêncio Azevedo (66).

— Mas, justamente, vocês estão se referindo a observações feitas a partir de uma realidade nova, na qual a lógica da realidade anteriormente conhecida não prevalece – disse Nicolau. — Acabamos de ter uma evidência dramática dessa mudança de realidade.

— Você quer dizer, então, que nossas observações físicas podem não corresponder ao mundo real? Isto é, que a realidade palpável se tornou surreal? – perguntou Laerte.

— É preciso admitir a possibilidade de que estejamos vivendo uma alucinação, um pesadelo coletivo – disse Helena Galvão (52), psicanalista.

— Absurdo! – exclamou alguém. – Como poderíamos sonhar todos juntos a mesma coisa?

— Tão absurdo como é o desaparecimento do continente – respondeu Helena. — São fenômenos fora da nossa compreensão. Inútil querer explicar o inexplicável.

— Esta discussão não leva a nada – disse Rodrigo. — Proponho que voltemos à questão inicial, que é simplesmente pensar o que fazer de prático.

Até então, Almir Clicquet (38) tinha se conservado em silêncio. Sua carreira de navegador solitário lhe valera celebridade mundial e três de suas façanhas estavam registradas no Guiness Book of Records: a travessia do Oceano Atlântico de costas, remando um pequeno barco de cinco metros; duas circunavegações da Antártida à vela, sendo uma de leste a oeste; e uma volta completa em torno das três Américas feita em veleiro sem motor, com o trecho ártico do Alaska percorrido sobre um trenó-jamanta. Ele pertencia àquela raça de pessoas de pés bem fincados no chão, dessas que são imunes a sortilégios e menosprezam as superstições e o sobrenatural. Almir tomou a palavra:

— Concordo com o que disse há pouco o amigo Laerte, não existem evidências suficientes de que toda a terra, exceto esta em que estamos, tenha desaparecido. Mesmo a ausência de sinal de rádio não é conclusiva. Do mesmo modo que acabamos de viver um fenômeno físico inexplicável, as ondas hertzianas também podem ter deixado de existir. Inexplicavelmente. O que eu me proponho a fazer de prático é preparar três veleiros oceânicos e sair em busca de terra lá onde ela deve estar.

— Você quer repetir a aventura de Colombo e Cabral ao contrário para tentar redescobrir o mundo! – observou Nicolau.

— Em certo sentido sim, mas os navegadores do descobrimento enfrentaram um desconhecido muito maior e suas embarcações eram bem precárias. A coragem deles foi incomparavelmente maior do que, por exemplo, a coragem do primeiro homem no espaço, protegido por toda tecnologia moderna. Nós não precisaremos de coragem excessiva, só determinação.

— Receio que seja uma aventura temerária e inútil – atalhou Rodrigo. — Afinal, o transatlântico Costa Chimera partiu rumo à Europa há vários dias e nunca mais deu notícia.

— O comandante desse navio – respondeu Almir – estava louco para nos ver pelas costas e quem sabe nem queira se comunicar conosco. Ou, querendo, talvez não possa se, como eu supus, as ondas de transmissão de rádio tenham desaparecido. A primeira coisa a testar é justamente isto, se o rádio ainda funciona. Antes de tudo, sairei mar adentro e tentarei me comunicar por rádio com o Iate Clube a uma boa distância.

Esta afirmação foi acolhida com sinais de aprovação. Almir continuou.

— Acho que encontrarei três veleiros de bom tamanho e marinheiros experimentados para tripulá-los. Não tomarei rumo oeste, em busca do continente porque, se ele não estiver mais lá, como parece, terei uma distância muito maior a vencer, todo o Oceano Pacífico, até alcançar a Austrália, a Nova Guiné e a Indonésia. Pretendo velejar para nordeste, num curso paralelo ao traçado da costa do Brasil, fazendo incursões a bombordo, à procura dessa costa. Se encontrar terra, a busca termina. Se não, continuarei até o paralelo quatro e tomarei o rumo do arquipélago Fernando de Noronha. Se ele não estiver mais lá, continuarei até Guiné Bissau ou Dacar, na costa africana. Se também lá eu não avistar terra, prosseguirei para o norte, em direção à Europa. Se não houver mais Europa, navegarei para a Ásia, que é o maior massa continental. E assim seguirei. Na pior das hipóteses não descobrirei terra alguma, terei dado a volta ao mundo e regressarei dentro de uns 120 dias.

— Isso se você não chegar à beira do mundo e despencar no precipício – disse Laerte.
Todos olharam para ele sem entender.

— Se vamos voltar à Idade Média, o mundo também pode ter voltado a ser plano, como acreditavam os antigos.
Almir não achou graça e concluiu afirmando que durante toda a viagem se manteria em contato, desde que o rádio funcionasse, é claro, e que precisaria de víveres para quatro meses.

Levaram duas horas e vinte minutos para chegar a pé ao Iate Clube. Já não havia transporte público por falta de combustível e de motoristas. Depois do triste episódio em que o doleiro Swinehound sequestrou uma embarcação e seu dono, o clube se tornara uma fortaleza, com vigilância reforçada. Entretanto, Almir Clicquet foi rapidamente reconhecido e, junto com a comitiva de doutores, conduzido à sala da diretoria, onde o projeto do redescobrimento do Brasil recebeu pronta aprovação. O teste de transmissão radiofônica foi consumado em seguida. Almir pilotou um dos iates do clube até 12 milhas de distância e depois contornou a ilha, mantendo contato constante por rádio. A transmissão e a escuta foram impecáveis, mas a ausência de qualquer interferência ou de sinais nas frequências próximas não deixava de produzir uma sensação fantasmagórica.

Por feliz coincidência, estava ancorado na marina do Iate Clube um magnífico catamaran de 48 pés que já tinha atravessado o Atlântico mais de uma vez. Era o Caxangá, veleiro capitânia do Grêmio de Vela da Escola Naval, que se encontrava em cruzeiro de final do curso de vela. A Ilhabela seria a última escala antes de sua volta à base, o Rio de Janeiro. O comandante, capitão-tenente Temístocles Cabral (35), recebeu com entusiasmo o convite para incorporar-se com a embarcação e toda a tripulação à expedição de redescobrimento do mundo, mas hesitou ao pensar na sua responsabilidade pelos jovens alunos. Estes, 18 aspirantes, ajudaram-no a concordar, lembrando que a alternativa era ficarem indefinidamente aprisionados na ilha e que a situação era semelhante a de tempos de guerra, quando o oficial mais graduado de uma unidade da marinha, bloqueada em águas inimigas, tem arbítrio para tomar decisões heroicas, até mesmo a de afundar o barco.

Dos outros, o veleiro mais qualificado para a expedição era o Paradis, um Swan de 82 pés que fora apreendido pela Receita Federal e se achava sob custódia do Yacht Club Ilhabela. A diretoria concordou em cedê-lo desde que Almir Clicquet e o grupo de doutores firmassem um documento declarando-se fiéis depositários solidários da embarcação e se comprometessem a restituí-la em perfeito estado ao fim da missão.

A terceira escolha foi problemática. Dentre os tantos barcos “órfãos”, isto é, aqueles cujos donos tinham desaparecido junto com o continente, Almir selecionou o Ariana, um Amel de 54 pés. Tratava-se de um veleiro novíssimo, extremamente confortável, equipado com o que havia de mais atualizado para a navegação. Entretanto, era uma embarcação de bandeira espanhola, com base em Alicante. Ela vinha de uma travessia do Atlântico iniciada no arquipélago dos Açores e chegara dia 4 de agosto. Seu timoneiro era o conhecido escritor e jornalista Santiago Beaulieu, que viajava em companhia da esposa, Maria Teresa, e dois passageiros. Os quatro tinham passado alguns dias de descanso na Ilhabela e, por sorte ou por azar, no Dia do Fim do Mundo achavam-se em São Paulo visitando amigos. O Iate Clube não tinha jurisdição sobre essa embarcação e por isso o diretor jurídico, Mário Thomás Barros (59) negou-se inicialmente a cedê-la; passou contudo a vacilar depois de ouvir o argumento irrefutável do grupo de doutores: se o Fim do Mundo era irreversível, os proprietários legítimos da embarcação também tiveram fim e nem eles nem seus herdeiros jamais reclamariam sua devolução – o barco não seria de ninguém; entretanto, se a expedição de Almir resultasse na redescoberta do mundo, os proprietários da embarcação seriam localizados e a restituição poderia ser efetuada. O diretor jurídico deu-se por vencido quando o sócio e diretor Max G. Fisher (58), presidente do banco MFHB, com agências em 147 países, se prontificou a garantir a reposição integral do veleiro Amel 54 mediante um cheque administrativo cujo valor em euros não foi revelado, mas excedia amplamente a cotação do veleiro publicada na última edição de Ocean Yachting Illustrated: 860.000 euros. Ademais, o jurista prof. Nicolau Pacheco redigiu um Termo de Responsabilidade que, assinado por todos os presentes, foi guardado no cofre do clube juntamente com o cheque de garantia. Uma cópia do documento foi transcrita no log book do Ariana.

Em uma semana a expedição estava pronta para partir. Apesar da escassez de mantimentos na ilha, o abastecimento dos barcos não foi difícil. Parte dos víveres foi doada, parte foi comprada sem uso de dinheiro. Valeu o escambo: em troca de um latão de diesel para a traineira Fandango, os congeladores se encheram de peixes; em troca de duas catraias e quatro remos, os porões e despensas se encheram de conservas, sacos de feijão (o arroz já escasseava), batatas, cebolas, milho e muita fruta. Só não foi possível conseguir carne fresca, nem mesmo carne de frango. E ovo nenhum. Alegaram os fornecedores que a população estava escondendo os ovos para chocar. Alguns fuzis e a respectiva munição, que faziam parte do equipamento do Caxangá, foram repartidos entre as três embarcações, depois de Almir ter lembrado o risco, remoto é verdade, de um confronto com os piratas do Mar Vermelho e do Oceano Índico – aqueles que nos últimos anos andavam saqueando cargueiros e sequestrando passageiros e tripulantes de iates de luxo.

Almir, chefe autonomeado da expedição, distribuiu as equipagens: dez aspirantes ficaram no Caxangá, sob as ordens do capitão Cabral, e oito foram tripular o Paradis, comandado por Hugo Scherben (64), o mais experiente dos iatistas locais que se apresentaram. O próprio Almir assumiu o Ariana e não quis mais ninguém a bordo, alegando que estava acostumado a navegar só, assim se sentiria melhor. Ao amanhecer do dia 24 de agosto, os três veleiros deixavam a marina do Iate Clube enquanto em algum lugar do interior da ilha estouraram alguns rojões. Era possivelmente uma manifestação de esperança dos traficantes de droga que, desde o Dia do Fim do Mundo, estavam sem matéria prima e sem negócio.

Assim que a flotilha tomou distância da Ilhabela, Almir descobriu uma passageira clandestina escondida no banheiro do seu barco. Era uma jovem frágil e bonita, de aparência muito bem cuidada, cuja roupa – simples conjunto de short e blusa – era visivelmente de grife. Seu impulso foi jogá-la no dinghy mandando que remasse de volta. Mas ela implorou ajoelhada que ele a ouvisse e contou:

— Eu me chamo Carmen Debizet Rocha, tenho 21 anos e moro no Jardim Europa, em São Paulo. Não sou uma daquelas pessoas desesperadas para escapar da ilha, quero isso sim escapar daquele cachorrão, o Max. Ele me iludiu, me deu presentes e joias e me trouxe para a Ilhabela só para uma noite de prazer. Mas aí aconteceu o que aconteceu. Ele mudou, ficou histérico, chorava o tempo todo, só falava da mulher, dos filhos e de dinheiro. Passou a gritar comigo e me espancar, me chamando de puta, piranha e coisas piores numa língua que não entendo. Olhe aqui estas manchas roxas, foi ele!

— Aquele Max não-sei-o-quê, o banqueiro diretor do Iate Clube?

— Esse mesmo. Fiquei com horror dele. É um monstro!

— Tudo bem, mas viajar comigo não dá. Nós nem sabemos onde vamos parar, se vamos aguentar a parada!

— Olhe, eu não tenho escolha, me deixe no primeiro porto que encontrar. Não posso mesmo voltar para casa.

— Por quê?

— Era para ser só uma escapada divertida. Eu menti para o meu marido, disse que ia visitar a minha irmã em Campos do Jordão. Mas agora a história até deve ter saído no jornal, ele e todo mundo já sabem.

— Se ainda houver mundo – disse Almir. — É para descobrir isso que estamos viajando. Enfim, vou pensar o que fazer com você. Enquanto isso, trabalhe. Você pode cozinhar, lavar, limpar.

— Mas eu não sei fazer nada...

Como previsto, os rádios dos dois iate clubes passaram a receber informações diárias do progresso da expedição. Mas eram informações desalentadoras – nada de costa, nada de Brasil, nada de Fernando de Noronha nem de África. De boca em boca, as notícias se espalhavam pela ilha inteira e, com o passar dos dias, foi se consolidando a convicção de que o mundo sumira mesmo. Depois de algumas semanas, poucas pessoas continuavam atentas ao noticiário monotonamente negativo. A esperança morrera e todos tinham que se conformar com suas perdas e se empenhar na luta pela própria subsistência.

O SUMIÇO DO MUNDO
CONTINUA!

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O baronato mostra seus dentes

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