O SUMIÇO DO MUNDO - Capítulo 14
Cresça e desapareça
ACONTECEU NO PENÚLTIMO CAPÍTULO: Algumas pessoas estão particularmente indóceis para recuperar suas propriedades na Ilhabela e o tentam pela força. Como num filme de guerra, um grupo de mercenários armados desembarca na praia de Castelhanos, atravessa a ilha e toma de assalto três mansões desabitadas. Depois invade um hotel transformado pelo governo Iroquês em moradia popular e desaloja as famílias que nele residem. Em seguida, se entrincheira no interior do imóvel, aguardando instruções. Depois de breve escaramuça, os mercenários se rendem à polícia militar, sem confessar quem são os seus mandantes. Nem é preciso. Quando o governo reconheceu como de fato transcorridos os 25 anos extracalendário vividos na Ilhabela, perdeu sentido a discussão do direito dos antigos proprietários de imóveis na ilha: prevaleceu o usucapião. Mas então o interesse pela recuperação das propriedades já se extinguia, elas estavam desvalorizadas. Ilhabela deixara de ser um paraíso turístico, a natureza tardaria décadas em restaurar as belezas naturais desfeitas pela ação do homem. Havia, além de tudo, o medo de que “o inexplicável” voltasse a ocorrer... Contudo, a previsão de que a economia da ilha estava definitivamente arruinada não se confirmou. Aconteceu o oposto. A fama de ser o único lugar do mundo em que se materializou a “terceira dimensão de espaço e tempo” fez da Ilhabela um irresistível polo de atração universal. Inteiramente alheios às antigas motivações, peregrinos de todo mundo acorriam em volume crescente para simplesmente estar ali, respirar o mesmo ar mágico respirado pelo povo privilegiado que vivera aquela experiência única. Em pouco tempo a afluência de um novo tipo de turista estimulou um desenvolvimento galopante da hotelaria, do comércio de varejo, dos centros de diversão, da construção civil. Multiplicaram-se por toda ilha os templos dos mais variados credos. A produção e a exportação de suvenires, apesar de uma autenticidade duvidosa, chegou a contribuir significativamente para o PIB nacional... PARA LER A ÍNTEGRA DO CAPÍTULO 13, CLIQUE AQUI. |
Cresça e desapareça
Coloridos ônibus de dois andares, sendo o de cima descoberto, faziam o serviço de city tour (melhor dizer island tour), parando nos pontos de maior interesse. Os turistas podiam então visitar algumas das mansões arruinadas e conservadas como monumentos; o velho pontão das balsas, restaurado e mantido como marco histórico depois de ter sido substituído pela nova estação de embarque-desembarque semelhante a um aeroporto; o antigo restaurante Deck; o edifício à Rua Benedito Cardeal, onde funcionara o governo da ilha durante seu sumiço; o estádio municipal com seu Museu da Antiguidade; o Colégio São João e a Escola Estadual; a usina hidrelétrica de Água Branca; a praça que foi o Tabernáculo da Oração e a Praça da Bandeira, em que se deu a eleição do bispo Doroteo; os postos de observação do mar ocupados, durante o governo do bispo, pelos vigias incumbidos de assinalar a aproximação de qualquer embarcação ou sinal de vida humana procedente do resto do mundo.
Certo dia, ao completar um city tour, a jovem poliglota que trabalhava como guia naquele carro dirigiu-se ao último passageiro que continuava sentado e não mostrava intenção de se levantar. Perguntou:
— Do you speak English?
— Oh, yes, I am English.
Eis a continuação da conversa, traduzida:
— Desculpe – disse ela – aqui é o ponto final. Se o senhor quiser repetir o tour, terá que tomar o próximo ônibus; ele sai daqui a vinte minutos.
— Obrigado, já vou descer. Estou decepcionado porque esperava que este tour me levasse à casa do senhor Iroquês... A senhorita sabe como posso chegar lá?
— Ah, isso não será fácil, temos instrução de não parar lá. O senhor Iroquês e sua família não gostam de ser perturbados por turistas.
— Eu não sou turista, permita que eu me apresente. Sou Dick Sarto, da BBC de Londres. Pretendo rodar um documentário no qual a entrevista de Mr. Iroquês deve ser o ponto alto.
— O senhor deverá marcar essa entrevista pelos canais oficiais. Já esteve na Suribra?
— Miss... como é o seu nome?
— Ava Kindl.
— Prazer em conhecê-la, Miss Kindl. Tão loira, tão branquinha, você é brasileira?
— Não senhor. Sou austríaca. Eu estou em pós-graduação de semiótica na Universidade de Viena e agora faço um estágio aqui...
— Perdão, o que esta ilha pode ter de interessante para quem estuda sinalização, gestos, comunicação?
— Tudo, senhor Sarto. Aqui eu ouço todas as línguas e todos os dialetos. O senhor está na própria Torre de Babel.
O cineasta inglês explicou então porque só iria procurar alguma repartição pública em último caso. Ele passara os últimos 40 anos rodando documentários nos quatro cantos do mundo, muitas vezes em zonas conflituosas ou em terra de ninguém, e aprendera a sempre procurar os atalhos e a desconfiar dos “canais oficiais”.
Ava foi simpatizando com aquele homem, à medida que o ouvia. Ele parecia ser o oposto dos paparazzi que já tinham invadido a ilha. Podia ser seu pai, um longilíneo tranquilo de cabelos brancos e olhos azuis. Acabaram a conversa à mesa de um café.
— Acho que posso conseguir um atalho para o senhor – disse Ava – Pode me encontrar aqui amanhã cedo, às oito?
As novas autoridades tinham atendido a um pedido de Iroquês e a romaria de peregrinos à sua casa na Ponta Azeda estava sustada. O lugar era tido por muitos como o maior santuário de Ilhabela, reduto do homem que soube assegurar à população os meios de sobrevivência durante aqueles anos em que Ilhabela ficara perdida no espaço-tempo. Longe de se sentir lisonjeado, Iroquês se irritava por ter de desempenhar um papel que não queria ter. Dizia:
— Não vivi tudo o que vivi para agora virar boi de presépio!
Naquela noite, ao jantar – tinham o costume de jantar todos juntos em torno de uma mesa que foi crescendo à medida que a família aumentou – Selene disse:
— Papai, sabe aquela professora loirinha que ensina alemão para as suas netas?
— Sei, a Ava. O que há com ela?
— Ela pergunta se pode trazer amanhã um cineasta inglês para filmar o senhor...
— Essa não! – exclamou Iroquês. — Não aguento mais essas sessões de filmagem, com aquela gentarada à minha volta, luzes que ofuscam, toda a confusão...
— A Ava diz que ele trabalha quase sozinho, com uma câmara na mão.
— Também estou farto de dar entrevistas para gente que não conheço, sem saber o que vão fazer sair da minha boca.
Gesualdo entrou na conversa:
— Pelo que eu entendi, esse inglês pretende fazer um trabalho sério. Não será mais um daqueles filmes sensacionalistas, puxados a esotéricos. Acho que o senhor devia pelo menos escutar o homem.
Ao receber a notícia de que seria recebido, Dick Sarto convidou Ava Kindl a acompanhá-lo e prestar o serviço de intérprete, já que ele falava uma mistura de espanhol e italiano difícil de entender. Ambos, mais o assistente incumbido de captar o som, apresentaram-se na manhã seguinte à casa de Iroquês. Na voz de Ava, Dick pediu, antes de mais nada, permissão para filmar a própria reunião, que poderia fazer parte do documentário. Ele se comprometeu a apagar todas as imagens caso o Sr. Iroquês não concordasse com o projeto. Iroquês concordou.
Intercalando intervalos regulares para ouvir o que Dick Sarto dizia, Ava assim traduziu suas palavras:
— “O meu filme se chamará Grow and Vanish, isto é, Cresça e Desapareça. Só abordarei o fenômeno do desaparecimento e a reaparição da Ilhabela para situar o espectador diante desse fato de conhecimento universal. Ficaremos longe de qualquer interpretação metafísica ou religiosa. Resolvi fazer este filme quando li a tradução de Nossa Única Terra. Sim, aquele pequeno livro que relata as soluções encontradas e não encontradas para os problemas que o seu governo enfrentou, senhor Iroquês”.
— Mas aquilo é uma publicação superficial, uma divulgação otimista de atos administrativos escrita para animar o povo – atalhou Iroquês. — Me espanta muito que tenha sido traduzida...
— “Foi traduzida para diversas línguas, senhor Iroquês, porque é impressionante. Trata-se do relato desapaixonado de um fato real que nos alarma ao extremo: o gênero humano é compelido a viver com recursos mínimos, sem possibilidade de buscá-los em outro lugar, porque não há outro lugar, nem de se valer de conhecimentos passados, para sempre inacessíveis”.
— “Temos os casos de sociedades isoladas, como por exemplo o caso dos povos inuit do Ártico ou as tribos primitivas da Nova Guiné, que vivem com extrema limitação de recursos. A diferença é que seu mundo cognitivo é também reduzido, essa gente não tem conhecimento nem expectativa de que possa dispor de outras fontes para obter comida e se vestir. Do mesmo modo, em outro patamar, temos as comunidades menonitas dos Estados Unidos. Elas recusam voluntariamente os recursos proporcionados pelo progresso, embora saibam que, no caso de uma epidemia fatal, sempre poderão recorrer à medicina moderna. E que serão obrigados a se submeter, em casos extremos, às determinações do Estado”.
— “Para os povos primitivos que citei, o espaço situado além do território conhecido será misterioso, desconhecido, mas não incute nos indivíduos a noção de uma limitação física, de mundo finito. O meio ambiente dos menonitas é limitado apenas pelas normas religiosas, autoimpostas. E na Idade Média, quando se acreditava que a terra era um disco plano, o mundo era limitado porém a borda desse mundo estava bastante distante e só infundia receio nos navegantes mais ousados”.
— “Vocês, os 24 mil habitantes da Ilhabela, sabiam que estavam condenados a viver apenas com o que estava a seu alcance. Vocês limitaram a natalidade porque seria impossível aumentar os suprimentos vitais ou criar novos. Vocês tinham conhecimento de tudo o que o homem é capaz, tinham provado o fruto proibido, mas de repente ele ficou fora de alcance. Nunca mais haveria matéria sobre a qual o homem pudesse exercer sua capacidade. A capacidade humana que excedesse à habilidade de satisfazer necessidades básicas se tornara inútil. Estou me fazendo entender?”.
— Perfeitamente – respondeu Iroquês, secundado vivamente por Gesualdo, Venúsia, Selene, toda a família e mais os vizinhos que pouco a pouco tinham acorrido para ouvir a dissertação.
— “Vocês viveram numa sociedade que excluiu a noção de progresso” – continuou Ava, isto é, Dick. — “Uma sociedade em que as ideias de progresso ou de desenvolvimento não tinham sentido. Este será o foco do filme que pretendo dirigir”.
— “Como é a vida da gente numa sociedade em que nenhum indivíduo sente a pressão de se desenvolver, de produzir mais? Se não há essa necessidade, então para que tentar progredir? Toda a competição está suprimida. Nem no mais ideal dos socialismos se imaginou uma situação como essa em que vocês viveram. Vocês estavam felizes? Mais felizes do que agora? Vocês eram mais generosos, se davam mais uns aos outros? Enfim, havia mais amor? A inveja, a hipocrisia, o egoísmo, a avareza e os outros pecados bíblicos tinham desaparecido?”.
— “Os seus últimos 25 anos foram vividos na mais completa contramão da civilização ocidental. Agora, reconduzidos ao mundo real, e pelo que vejo na voragem de um sistema que reproduz o pior do oportunismo capitalista, vocês já percebem, e eu acredito que duramente, a pressão pelo crescimento”.
— “Ou você cresce ou desaparece. Não tem como fugir. Cresça e Desapareça não é apenas um título, uma expressão de efeito. Nosso mundo é uma imensa Ilhabela solta no espaço e seus recursos são igualmente finitos. Sabemos dos limites. As reservas de petróleo, de água potável, de terras férteis, até de oxigênio, são limitadas. Dentro deste mundo finito, a humanidade não poderá crescer e se desenvolver indefinidamente...”.
— É um belo discurso – disse Iroquês depois de um prolongado silêncio. E eu estou de acordo. Mas, diga-me, mister Sarto, o que pretende mostrar no seu filme para apoiar essas palavras?
— Obrigado – agradeceu Dick Sarto — “Pretendo tomar o livro Nossa Única Terra como roteiro para mostrar o que fez para sobreviver este último resto de humanidade, abandonado à própria sorte num único e minúsculo pedaço de terra, sem recursos e sem os conhecimentos essenciais legados pela civilização. Quero demonstrar que isso só foi possível graças à completa inversão da escala social, na qual o indivíduo era valorizado pela sua habilidade de produzir gêneros de primeira necessidade. Vamos mostrar como o homem pode viver sem estar subordinado à ideologia de crescimento e do progresso”.
— “O sentido geral do filme é uma advertência. Se ele levar os espectadores a uma reflexão sobre a questão do crescimento compulsório, do progresso pelo progresso, do consumo pelo consumo, já me darei por satisfeito”.
— Muito bem – disse Iroquês. — Quando é que o senhor começa a rodar?
— Acabo de começar!
F I M